Animosidade entre motorizados e bicicletas aumenta conforme o trânsito atinge, a cada dia, um novo recorde de congestionamento. Afinal, lugar de bicicleta é onde?

SÃO PAULO, AVENIDA PAULISTA, quarta-feira, dez horas da manhã. Um ciclista avança rapidamente pela pista da direita, ultrapassando sem esforço os automóveis que transitam entre a primeira e a segunda marcha, em uma lentidão quase constante. Munido de capacete e outros apetrechos, farda de neoprene, o ciclista parece preparado para a guerra. E é mesmo uma batalha. “Sai da frente!”, “Não vê que está atrapalhando?” são frases das mais gentis que escuta pelo trajeto. Mas o trânsito é muito mais agressivo do que isso. No dia-a-dia, quem decide se aventurar na bicicleta para se transportar enfrenta mais do que caretas feias de motoristas. Ouve muita buzina, é pressionado na roda traseira por um para-choque insistente, pedala a alguns centímetros da parede de alumínio formada pelos ônibus coletivos, que fazem questão de “tirar uma fina” – como os próprios ciclistas definem – de quem está na bicicleta como se para ensinar uma lição: a de que, nas cidades, a rua seria propriedade dos veículos motorizados.

A cena descrita poderia ter acontecido em qualquer grande cidade brasileira, em qualquer grande avenida, dia da semana ou hora do dia. Não tem nada de inédita e provavelmente já foi observada – ou mesmo protagonizada – pela maioria dos leitores, de um lado ou de outro. Isso porque cada vez mais pessoas têm enfrentado o dilema entre o esgotamento da paciência, de tempo e de dinheiro de usar um automóvel e o medo de se exporem sobre uma bicicleta pelas ruas de uma grande cidade, tendo que lidar não apenas com a violência do trânsito, mas também com intempéries e topografia. Mas se entre grupos de amigos, familiares ou colegas de trabalho há pessoas que optam por diferentes tipos de locomoção, por que nas ruas o clima é de antagonismo e animosidade? O que muda quando nos misturamos à massa caótica do trânsito?

A questão diz respeito a todos, especialmente no momento em que uma minoria começa a fazer-se notar. Hoje, mais de 300 mil viagens diárias são feitas em bicicletas (o dobro de 1997), 12,6 milhões a pé – outro meio de locomoção vulnerável e pouco respeitado nas ruas –, 12 milhões em transporte público (ônibus, metrô e trem) e 10,3 milhões de carro (contando quem dirige e quem vai de carona). Os dados de 2007 da última pesquisa de Origem e Destino (O/D) do Metrô de São Paulo revelam uma tendência que exige solução. A discussão de mobilidade hoje passa pela bicicleta, porque ela é uma das principais alternativas para os engarrafamentos. “O motorista reclama do trânsito, mas faz parte dele. O trânsito é um monstro que se alimenta de ruas. Quanto mais rua damos, mais ele cresce. São Paulo vai parar. Não é questão visionária, é matemática”, analisa Leandro Valverdes, cicloativista sempre presente nos eventos e discussões sobre a promoção da bicicleta em São Paulo.

Em janeiro deste ano, a população voltou os olhares para a questão da bicicleta apenas depois de uma desgraça vivida justamente na icônica Avenida Paulista: Márcia Regina Prado, 40 anos, ciclista experiente, pedalava na faixa da direita quando se desequilibrou pela aproximação de um ônibus e caiu, sendo atropelada pelo coletivo e falecendo no local. Após o ocorrido, os ânimos se acirraram e houve quem defendesse todos os lados, se esquecendo que o lado é um só, o humano. Márcia entrará para as estatísticas da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) de 2009: no ano passado, 1.463 pessoas morreram na capital paulista em acidentes de trânsito, 45,8% pedestres, totalizando 670 pessoas, e 69 ciclistas. “Não tem cabimento correr risco de morrer porque escolhemos a bicicleta como meio de transporte”, indigna-se Valverdes, que conhecia Márcia da Bicicletada, pedalada coletiva mensal na Avenida Paulista.

LUGAR DE BICICLETA

Ao contrário do que muitos possam imaginar, a solução para inclusão da bicicleta no trânsito urbano não é construída apenas com ciclovias ou ciclofaixas. Elas são partes da resposta, mas ainda não configuram um sistema integrado. “A ciclovia é muito boa, sim, mas em uma pista expressa. Em uma rua de bairro não é uma ciclovia que vai resolver o problema, porque ela nunca vai chegar na porta da minha casa, então terei que pedalar fora dela em algum momento”, defende João Lacerda, um dos diretores da ONG Transporte Ativo, que fomenta o uso da bicicleta para locomoções. “Às vezes o motorista acha que lugar de ciclista é só na ciclovia”, complementa André Pasqualini, analista de sistemas e cicloativista, criador do blog Ciclo BR, o qual pretende transformar em uma plataforma de informações e formação pelo estímulo e proteção da bicicleta e de seus usuários.

Por isso, quem anda de bicicleta quer ciclovias, sim, mas não somente isso. Quer andar com espaço e segurança, o que depende também da atitude dos motoristas. De outra forma, sair da ciclovia poderia significar, para quem dirige, uma infração do ciclista e, logo, no caso de um acidente, atropelamento por “justa-causa”. “É a lógica da guerra que se manifesta no trânsito. A ciclovia tem um papel de proteção, mas pode segregar dependendo da forma como for aplicada, se for colocado que o lugar do ciclista é só lá. Isso vai agravar problemas quando ele estiver fora da ciclovia”, observa o jornalista Thiago Benicchio, que alimenta hoje um dos principais blogs de cicloativismo de São Paulo, o Apocalipse Motorizado.

Valverdes explica que a solução está mais ligada ao comportamento dos motoristas do que ao espaço exclusivo. “Implantar infraestrutura demora, o fundamental é ter respeito pelos ciclistas mesmo que não haja ciclovia ou ciclofaixa, para ele não correr riscos. Infraestrutura para bicicleta se faz com uma lata de tinta. Os motoristas têm que aprender a compartilhar a rua”, afirma. A disputa pelo espaço público, no entanto, envolve uma logística de fluidez que acaba priorizando propositalmente os automóveis. É o que explica o engenheiro Eric Ferreira, doutor em mobilidade e professor universitário. “Temos um recurso escasso e valioso que é o espaço público, e a política hoje é priorizar o transporte privado. Para melhorar a viagem de quem vai a pé prejudica-se quem usa o carro, por isso 90% dos semáforos não têm tempo para pedestres. Melhorar a circulação de pedestres e ciclistas afetaria o fluxo de veículos”, analisa.

A CET, que preferiu não ser entrevistada, tem como função garantir a fluidez do trânsito e, por isso, prioriza o fluxo de veículos motorizados, que são os que ficam presos nos congestionamentos. Para Ferreira, ainda não chegou ao Brasil o conceito de “gerência da mobilidade”. “Precisamos gerenciar a mobilidade como um todo, e não só o carro, o pedestre, a bicicleta”, argumenta. Ferreira demonstra ceticismo em relação a uma resposta ao trânsito nas grandes cidades brasileiras, mas coloca que seria ideal, nas vias principais, haver uma faixa para a bicicleta, outra para o transporte público e o restante para os carros. “O pior ficaria para o carro. Imagina isso na 23 de Maio [avenida expressa de São Paulo], quem ficaria congestionado?”, provoca.

O sistema ideal seria esse, mas ele não existe hoje nos pólos urbanos brasileiros. Para quem pedala no dia-adia e não pode esperar, então, lugar de bicicleta é onde? “Não condeno quem pedala na calçada como tática de sobrevivência, desde que não seja para o pedestre o que o ‘motorizado’ é para o ciclista. Mas, teoricamente, o lugar de bicicleta é na rua”, afirma Benicchio. Pois é, lugar de bicicleta é na rua, e quem define isso é o Código Nacional de Trânsito (CNT).

As normas de condução determinam que “a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores”. Ou seja: se não houver um espaço designado para o ciclista na rua, ele poderá circular na borda direita ou esquerda da via com preferência sobre os carros. Além disso, o motorista deve guardar uma distância de 1,5 metro da lateral do ciclista. Para quem desrespeitar, a infração é média e sujeita a multa. O mesmo vale para ciclistas na calçada, onde a bicicleta só pode subir com autorização e sinalização adequada, caso contrário, segundo o CNT, pode ter sua bicicleta confiscada e pagar multa.

“Temos um código de trânsito que na teoria funciona, parece de primeiro mundo. Mas quantas multas já foram geradas por um carro não respeitar o metro e meio e diminuir velocidade ao ultrapassar um ciclista?”, aponta Valverdes. Lacerda, da ONG Transporte Ativo, concorda. “Batemos sempre na tecla de que, se os motoristas e os ciclistas respeitassem o que está no Código de Trânsito, não teríamos problema algum. Mas temos cidades que induzem as pessoas a cometerem infrações porque a lógica ainda é de privilegiar o deslocamento mais rápido e as pessoas esquecem do componente humano, que é fundamental”, afirma.

CADA UM COM SUA FUNÇÃO

Cada meio de transporte tem uma característica e finalidade própria. O automóvel, por exemplo, é um veículo prático para longas distâncias, viagens, carregar bagagens ou objetos, compras do mês, levar mais de uma pessoa ou crianças, ou para dias e horários com trânsito mais fluido ou com escassez de transporte público. A bicicleta, por outro lado, é um veículo para curtas distâncias – aconselha-se que seja utilizado no dia-a-dia, integrado ou não a outros meios, no máximo sete quilômetros por percurso.

A utilização de cada tipo de veículo depende do estilo de vida, do destino e do bom senso de cada um. “Não é questão de ser contra o carro. Ele está aí e é útil para muitas coisas. Mas existe o problema do uso do espaço urbano, que é necessário para a locomoção, por isso as pessoas poderiam considerar outros meios”, afirma Pasqualini. Lacerda complementa que a bicicleta nunca será – e nem deveria ser – utilizada em 100% das viagens por 100% das pessoas. “Se tivermos um transporte público de qualidade, respeito à bicicleta, quem precisa usar o carro poderá fazê-lo com mais tranquilidade. Queremos mostrar que a mobilidade precisa de diversidade”, comenta.

A BICICLETADA

Enquanto a diversidade de um sistema de transportes seguro, rápido e de qualidade para todos os tipos de veículo está longe da realidade da população, resta, a quem não tem escolha, se aventurar pelo asfalto da melhor forma possível. Pensando no dia-a-dia caótico do trânsito, Reginaldo Paiva, presidente da comissão de bicicletas da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos) e membro da gerência de planejamento da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), pega emprestado de Umberto Eco a teoria dos “apocalípticos e integrados”, aplicada pelo escritor italiano para explicar a cultura de massas, no caso aplicada à bicicleta. “Não existe ‘o ciclista’.

Existem tribos que têm noções diferentes do que é usar a bicicleta na cidade. Um grupo não está nem aí se tem lugar onde estacionar, se tem tratamento rodoviário, se há problemas. Ele simplesmente pega a bicicleta e sai no meio do trânsito. Esses são os apocalípticos. Os integrados são os que esperam existir o mínimo de estrutura para então usar a bicicleta. O pessoal da Bicicletada adotou essa visão e se chamam de apocalípticos”, explica. A Bicicletada, grupo do qual Márcia, a ciclista atropelada em janeiro, fazia parte, é um evento que reúne desde 2002 pessoas para pedalar juntas na última sexta-feira de cada mês, começando na Praça da Bicicleta, onde a Avenida Paulista encontra a Rua da Consolação. André Pasqualini, um dos participantes de longa data, explica como funciona. “A Bicicletada não é organizada e não tem líderes, ela simplesmente acontece. Foi inspirada na Critical Mass, que começou em São Francisco inspirada no trânsito da China de um tempo atrás: não havia sinalização, faixas, nada. Mas as massas se impunham umas às outras de uma maneira muito natural e sem acidentes graves, porque as pessoas tinham respeito entre si”, conta.

O objetivo da Bicicletada, assim, é unir os ciclistas de forma a criar uma massa e chamar atenção de quem observa, dando exemplo, segundo Pasqualini, de como utilizar o espaço público. “Só temos que marcar um local e horário, deixar claro que não pode haver líder e o ritmo tem que ser bom para todo mundo”, completa. Tinho Costa participa da Bicicletada há um ano, pouco tempo depois de quando decidiu começar a usar a bicicleta para se transportar. “Achei interessante essa ideia de todo mundo tentar um meio de locomoção diferente, uma qualidade de vida melhor. Eu parei de fumar, por exemplo, porque me faltava ar”, descreve. “Gosto da interação das pessoas na Bicicletada. Todos são diferentes, mas com o ponto em comum que é o prazer de andar de bicicleta.

Além disso, temos oportunidade de trocar experiências e reivindicar um espaço que faz parte do dia-a-dia de todos.” Costa usa a bicicleta para ir à faculdade, ao trabalho e encontrar os amigos. Desde 2008, garante ter perdido 44 quilos por conta da mudança. “Eu era sedentário, mas não aguentava mais ficar preso no trânsito. O sinal abria e fechava e eu tinha andado dez metros. Aí eu cansei. Assisti a uma reportagem sobre bicicletas na televisão, achei interessante e comecei a testar”, conta. Costa é apenas um dos milhões de brasileiros que chegam ao limite da paciência ao enfrentar congestionamentos diariamente. As alternativas (como a bicicleta), no entanto, ainda não oferecem para a maioria das pessoas motivos suficientes para trocar as vantagens de um automóvel por outras. “Eu queria que o ciclista tivesse a mesma atenção que o motorista tem. Se uma pessoa tem o direito de se locomover de carro, o ciclista tem o mesmo direito com a bicicleta”, desabafa Pasqualini. “Quero poder atravessar um viaduto com segurança, quero que quando façam uma rodovia exista também uma ciclovia ou uma ciclofaixa. Não tem motivo para fazer uma ciclovia na rua do meu condomínio. Quero que haja um estudo para encontrar diversas soluções para a bicicleta, como paraciclos, ciclovias, ciclofaixas, melhores rotas para ciclistas. Quero a atenção dos governantes para fomentar a bicicleta do mesmo jeito que fazem com o carro.” Para ele, a bicicleta não é a solução absoluta para o trânsito das grandes cidades, mas quem quer usar tem que ter o direito de fazê-lo com segurança e um mínimo de estrutura.

Leandro Valverdes complementa: “Hoje, em São Paulo, lunático deixou de ser quem usa a bicicleta, mas quem usa o carro”.

VÁ DE BIKE

Confira dicas e dismistificações de quem anda de bicicleta Distância e topografia

Bate aquela preguiça só de pensar em encarar uma ladeira ou alguns quilômetros sem um motor para ajudar? Vá aos poucos. O cicloativista André Pasqualini, do site Ciclo BR, sugere: “O relevo e a distância são fatores limites para quem não anda, mas com o passar do tempo você vê que as subidas não são tão ruins como imaginava, porque nossos limites aumentam”. Além do que, as bicicletas de marcha atenuam bastante o esforço.

Mau tempo

A chuva pode parecer um fator limitante para quem vai de bicicleta, mas, para os que percorrem curtas distâncias, uma capa de chuva pode dar conta do recado. Afinal, em dias chuvosos, quem vai de carro ou de ônibus acaba parando no trânsito.

O percurso

A escolha da rota é essencial. Evite vias movimentadas e/ou de alta velocidade, ainda que outros trajetos pareçam mais longe. Você estará mais seguro e a viagem será mais agradável. “O caminho que você faria de carro ou ônibus na maioria das vezes não é o melhor para a bicicleta: é preciso escolher rotas alternativas por dentro dos bairros”, ensina o cicloativista Leandro Valverdes.

Equipamento

Infelizmente a qualidade da maioria das bicicletas brasileiras é ruim. Prefira gastar um pouco mais nela para evitar acidentes graves. O capacete não é garantia, mas aumenta a segurança do ciclista. Pasqualini afirma que o mais importante é se fazer visível, daí utilizar instrumentos de iluminação, tanto na bicicleta quanto, se possível, na roupa ou mochila.

Direitos e deveres

Segundo o Código Nacional de Trânsito, o ciclista pode trafegar, onde não houver ciclovias e ciclofaixas, nas bordas direita e esquerda das vias, e os demais veículos devem manter distância lateral de pelo menos 1,5 metro. Mas é dever do ciclista também respeitar quem está a pé, não pedalar nas calçadas e nem cortar faixas de pedestres no momento da travessia.

Postura

“Tem aquele ciclista que vai na contramão e se impõe de uma maneira errada. Sabendo dos meus direitos e deveres, eu passo uma boa impressão para o motorista, porque ele vai me ver como mais um componente no trânsito, e não um intruso”, observa João Lacerda, da ONG Transporte Ativo.