Programas de iniciação científica na educação básica apostam no desenvolvimento de habilidades como organização do estudo e conhecimento, introdução à pesquisa e ampliação da capacidade de abstração, preparando os jovens para a vida acadêmica e profissional
Quem assiste no YouTube à vídeo-aula sobre o uso que o cineasta Stanley Kubrick faz de diversos tipos de lentes na busca de efeitos específicos nos seus filmes, em uma mistura de lição de arte e de física, não imaginaria que o trabalho foi integralmente feito por um aluno de ensino médio se o símbolo da escola não aparecesse na introdução. Daniel Guinezi, recém-graduado na Escola Móbile, desenvolveu “As lentes na sétima arte” como resultado de um projeto de iniciação científica no colégio. “Normalmente, todos os trabalhos que fazemos são já pré-moldados e a gente só executa. A iniciação científica foi a primeira oportunidade para ter certa liberdade criativa, fazer um trabalho mais autoral e que se distingue dos outros dos colegas”, conta Daniel. “Além disso, eu nunca tinha feito uma pesquisa durante meses para culminar em um trabalho. Foi bom para ter a experiência do que vamos ter que fazer na faculdade.” Inspirado nesse projeto, ele está prestando vestibular para Publicidade e Propaganda, com a ideia de produzir vídeos que comuniquem uma mensagem para o público.
Daniel é exemplo do que vem acontecendo em cada vez mais escolas. Preocupadas em preparar os jovens mais do que para o exame vestibular, mas para a vida acadêmica da graduação e da pós, muitas desenvolveram programas de iniciação científica em diferentes moldes para alunos do ensino fundamental e, especialmente, do médio. No Móbile, a iniciação científica não é obrigatória nem faz parte do currículo. Alunos do segundo ano do ensino médio podem se inscrever e se submeter ao processo seletivo, que segue três critérios, semelhantes ao ensino superior: pertinência do tema, desempenho e disponibilidade do aluno (ele não pode ter uma recuperação, por exemplo) e a capacidade dos professores de orientá-lo, pois há um número limitado de vagas.
A partir disso, o processo continua tal como é na universidade, mas com um acompanhamento ainda mais próximo do orientador. Levantamento de bibliografia, escolha de fontes de pesquisa, entrevistas, organização de tempo e cronograma. Existem três professores que também dobram como coordenadores de iniciação científica de ciências da natureza e matemática, física e de humanidades. Quando o tema escolhido pelo aluno desvia muito dessas áreas principais ou quando os coordenadores estão sobrecarregados, outros professores da escola são convidados a orientar.
O diferencial da proposta do Móbile, no entanto, é ter como premissa o compartilhamento dos trabalhos no fim do processo, depois de um ano. Além de fazer e entregar uma pesquisa por escrito, os alunos precisam encontrar uma forma interessante de reproduzir esse trabalho em uma atividade virtual colocada pela escola. No ano passado, foram jogos virtuais. Esse ano são as vídeos-aula. Com isso, os alunos aprendem não apenas como fazer uma pesquisa acadêmica, mas a dominar uma ferramenta eletrônica – mais do que como usuários, como desenvolvedores.
Maria da Glória Martini, professora de física do colégio e coordenadora de iniciação científica de ciências e matemática, explica que os temas, apesar de livres, estão quase sempre ligados ao currículo escolar, mas não são necessariamente abordados pelo saber escolar. Por exemplo: teoria da relatividade é um assunto abordado na sala de aula, mas um aluno decidiu fazer sua vídeo-aula sobre isso aliado ao acelerador de partículas desenvolvido pelo Cern (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear). “Eu falo disso na classe? Falo. Mas não com a profundidade que ele gostaria de estudar e que pode ser compartilhado com mais gente”, explica. “Ele entrou no site do Cern, conversou com pesquisadores de Genebra, aprendeu muito, muito além do que aparece no vídeo. Mas para poder ensinar, você tem que justamente saber mais do que aquilo que vai falar, e tem que traduzir aquilo para alguém que saiba tanto quanto você sabia quando começou a estudar o tema.” A ideia, segundo ela, é abrir uma janela para que outras pessoas, de outras escolas e outras cidades e estados, possam se aprofundar no tema a partir da apresentação dos alunos.
Essa questão, na verdade, está no cerne de todo projeto de iniciação científica – seja ele feito na universidade ou na educação básica: o estudo e aprofundamento individual em um tema especializado. Os alunos aprendem muito com isso, mas a principal intenção da escola é focar no processo e no ato de ensinar a pesquisar: como fazer referências bibliográficas, escolher fontes de pesquisa, organizar o material e o tempo, fazer um recorte pertinente do tema, aprender a desenvolver um texto de fôlego e bem estruturado, lidar com prazos longos.
Tendo isso em vista, o modelo de iniciação científica muda de escola para escola, mas sempre com muita atenção no processo. Uma iniciativa mais comum entre alguns colégios são as monografias feitas de maneira semelhante ao trabalho de conclusão de curso na faculdade. É o caso do Colégio Ítaca, que oferece a monografia como algo obrigatório no segundo ano do ensino médio, sendo que o trabalho vai de abril a novembro. A cada ano a escola propõe um tema amplo e 95 subtemas e os alunos ficam livres, dentro desse contexto, para escolher do que querem falar, podendo se apropriar dos subtemas sugeridos ou não. Esse ano, por exemplo, o grande tema foi a globalização. “Quando pedimos um tema não é para limitar em uma camisa de força, é para garantir que todos tenham um ponto de partida inicial. E são sempre assuntos que estão relacionados de alguma forma à vida deles”, explica Mercedes Ferreira, diretora do ensino médio do Ítaca.
Os alunos escolhem um professor orientador, o que acaba por fazer com que a maior parte do quadro docente esteja envolvida com a orientação de trabalhos, mas não há uma disciplina reservada para essa atividade. Há muita troca de emails e os alunos se encontram com seus orientadores fora do horário de aula, eventualmente usando algumas aulas para tratar do assunto. Na hora da correção, cada estudante faz duas cópias do seu trabalho, que é avaliado pelo menos por dois professores que fazem uma média e aplicam uma nota, e a monografia fica armazenada na biblioteca da escola.
Mercedes explica que o tema escolhido pelos alunos é importante para que eles se interessem pela pesquisa, mas que o foco da escola é ensinar o passo a passo metodológico envolvido em um trabalho acadêmico formal. Ao longo de seis meses, os alunos devem apresentar, como pequenas tarefas, etapas do desenvolvimento da sua monografia. Primeiro o tema e a justificativa dele, depois uma leitura que o aluno tenha feito e assim por diante. A ideia é construir junto ao jovem uma autonomia e segurança acadêmica e pessoal para o ingresso na universidade. “Sabemos que no Brasil, faculdade é uma arena. Esses meninos são jogados no trabalho de conclusão de curso e ficam sozinhos”, afirma Mercedes. Ela complementa que é um ledo engano as escolas de ensino médio pensarem que o final do curso é o vestibular. “Uma das funções do ensino médio é preparar para uma nova etapa da escolaridade, e não para o vestibular. Isso o cursinho faz muito bem. Preparar uma monografia significa, além de criar autonomia, pensar na questão da formalidade, no longo prazo, fazer um texto sozinho e elaborar uma pesquisa – que é uma iniciação científica.”
Outra questão interessante da monografia é a interdisciplinaridade. Mercedes observa que os alunos passam a compreender melhor que um tema de estudo muitas vezes envolve diversas áreas, e que na verdade todas elas estão conectadas na vida. “Assim, um aluno apaixonado por futebol, por exemplo, vê que também pode falar com a professora de sociologia, depois com a de matemática, e que muitas vezes as várias ciências se complementam para um resultado”, diz.
A monografia no Colégio Equipe se assemelha à do Ítaca em seus padrões, porém, além de obrigatória, é uma disciplina inserida no currículo, com avaliações bimestrais. O projeto é desenvolvido no terceiro, e não no segundo ano do ensino médio, que estuda primeiro a metodologia do trabalho científico durante um ano para depois se aventurar na tese. Nas aulas semanais de monografia, a turma de 50 alunos se divide em grupos de 10 e recebem orientação de professores voltados para as áreas de estudo de cada um. O tema de escolha, assim como nas outras escolas, não é a principal preocupação, e sim o processo metodológico, que culmina em uma apresentação da monografia para os colegas de sala.
Levar a experiência para fora dos muros da escola, segundo a diretora escolar do Colégio Equipe, Luciana Fevorin, é algo que parte dos alunos naturalmente. Vão às bibliotecas municipais e universitárias, entram em contato com pesquisadores, se inscrevem em seminários. “Tem uma história interessante sobre um garoto que estava fazendo uma monografia sobre história em quadrinho e por isso frequentava a biblioteca da Faculdade de Arquitetura da USP, e por causa disso e se interessou pela arquitetura e decidiu seguir a carreira”, conta. “Teve outra aluna que mandou seu trabalho de monografia para apresentar em um congresso e foi aceita.”
No ensino fundamental
O programa de iniciação científica no Colégio I.L. Peretz foi elaborado a partir do relato de ex-alunos que diziam ter dificuldades com trabalhos acadêmicos na faculdade. A experiência começou no ensino médio, que aprende as primeiras noções da metodologia de um projeto de pesquisa no primeiro ano e, no segundo, desenvolve todo o trabalho para passar por uma qualificação e banca (de professores) no terceiro. Depois disso, a escola ampliou a iniciação científica para todos os anos do ensino fundamental, a começar pelo quarto. “Percebemos que quanto antes o aluno começava a desenvolver esse pensamento científico, mas fácil era para ele depois, porque vai se acostumando com esse jeito de pensar e de ver as coisas”, afirma Roxane Nascimento, coordenadora de Projetos e Tecnologia do colégio.
Desta forma, os estudantes vão, ao longo dos alunos, adquirindo novas habilidades de pesquisa e pensamento acadêmico por etapas. Se no sexto ano eles aprendem a fazer uma pesquisa básica e a como buscar fontes, no sétimo já trabalham com a elaboração de justificativas, citações e levantamento de problemáticas, e no oitavo e nono ano tem como objetivo fazer uma pesquisa e criar um produto que atenda a uma necessidade real.
No fim de cada etapa, a escola incentiva os alunos a divulgarem o resultado de suas pesquisas, seja na participação de feiras de ciências, como a Febrace (Feira Brasileira de Ciência e Engenharia), organizada pela Escola Politécnica da USP, seja na publicação dos trabalhos na internet no formato de revista digital e site.
Roxane coloca que o jovem hoje em dia não tem dificuldade de obter novas informações, por isso o papel da escola no desenvolvimento do pensamento acadêmico é orientá-lo sobre como trabalhar com essa informação abundante. “Eles sabem de tudo o que acontece no mundo, mas precisam de orientação para o que fazer com essa informação, e é esse pensamento que tentamos desenvolver neles. Trabalhamos na solução de problemas, com a noção de que obtemos informações para resolver problemas”, analisa. “Outra questão é que desenvolvemos competências tecnológicas: uso da internet, computador, celular, tablets, sempre com o objetivo de aprender a buscar minha informação e organizá-la, para resolver um problema.”
Resultados para a vida
O foco dos programas de iniciação científica vai além do vestibular ou do conteúdo programático no currículo. O objetivo é, invariavelmente, desenvolver habilidades que ajudarão os jovens a organizarem seus estudos, sua maneira de pensar e de trabalhar, e terão um impacto direto na sua vida acadêmica e profissional. Por isso, é difícil avaliar resultados dessas iniciativas, levando em conta que elas primam pelo desenvolvimento de habilidades que podem ser usadas para a mais ampla gama de atividades, e não pelo simples aumento de proficiência em um assunto.
Exemplo disso é a ex-aluna do Colégio Oswald de Andrade Lívia Gueraldo, 26, hoje analista de recursos humanos sênior de uma grande empresa do ramo televisivo, que escolheu sua profissão de psicóloga por conta da experiência com a monografia obtida no segundo ano do ensino médio. À época, Lívia se aprofundou em psicologia social, mais especificamente na compreensão da mente adolescente, e isso fez com que ela descobrisse todo um universo de possibilidades para a sua vida acadêmica e profissional. “Aquela oportunidade me deu ferramentas para iniciar pesquisas em psicanálise, e me introduziu aos textos básicos da área”, relata. “Hoje em dia sou psicóloga e psicanalista, trabalho em Recursos Humanos, e é incrível como posso reconhecer nos trabalhos de recrutamento e seleção e planejamento de desenvolvimento de carreira como esta visão de mundo me oferece ferramentas para entender cada indivíduo nas suas particularidades dentro de uma organização, e pensar nas melhores práticas para seu aprimoramento.”
Daniel Guinezi, o aluno da Móbile do começo dessa matéria, não tem dez anos de formado como Lívia para avaliar o impacto da iniciação científica na sua vida, mas ele já observa que a experiência mudou a forma como ele trabalha. “A partir do momento em que fiz a iniciação, percebi que se existe um prazo, temos que nos programar com antecedência senão tudo se embola. Eu até conseguia fazer os trabalhos a escola na véspera, mas a partir da pesquisa percebi que um trabalho dessa magnitude a gente não consegue planejar na véspera. Essa parte da organização da rotina foi o principal ganho para mim”, descreve.
Maria da Glória, da Móbile, afirma que um grande ganho do projeto para os alunos está em aprender a levantar problemas e a buscar caminhos possíveis para a solução. “Para essa busca precisam conceber estratégias, planejar, produzir, e por fim acabam resolvendo esses problemas”, diz. Além disso, dentro da própria escola, nas outras disciplinas, a professora observa que os jovens adquirem um certo tipo de abstração, de capacidade de estabelecer relações entre assuntos e de fazer inferências. “É um salto de qualidade muito grande que se reflete em todas as disciplinas.”
Mercedes, do Ítaca, complementa que já na escola os alunos passam a se preocupar mais na redação de textos, trabalho e provas, “porque percebem que não é só o conteúdo que importa”. “Falamos de AM e DM – antes da monografia e depois da monografia – , porque eles ganham status de gente grande e isso faz diferença, porque ficam mais maduros”, diz. A experiência certamente traz ganhos práticos para os alunos na escola, mas os reais resultados para a vida podem ser observados depois de cinco a dez anos, afirma Luciana, do Equipe. “É um momento interessante que eles vão se dar conta de objetos de identificação, e isso acaba contribuindo para futura identidade profissional deles. Tem esse benefício de olhar para o mundo e saber estudá-lo.”