Em um cenário em que filhos de pais separados têm mais probabilidade de ter baixo desempenho escolar, é a chance do professor de intervir e reverter essa situação

“Vocês não sabem como é dura a vida com pais separados!”, desabafou uma aluna durante a reunião de classe de sua turma no Colégio Oswald de Andrade, em São Paulo. Durante o encontro, educadores questionavam os estudantes sobre o motivo pelo qual eles não estavam fazendo lição de casa como deveriam. “Essa menina estava sobrecarregada porque, com os pais brigando, tinha que assumir a própria vida sozinha aos 12 anos, sem apoio do pai ou da mãe”, conta Luciana Andrade, coordenadora do Fundamental II da escola.

Pesquisa lançada pelo Instituto Glia afirma que filhos de pais separados têm 46% mais chances de ter baixo desempenho na escola e duas vezes mais probabilidade de desenvolver uma doença mental do que crianças com pai e mãe casados. Não morar com um ou ambos os pais, segundo o estudo, confere ao filho 1,8 e 3,2 vezes mais de chance de obter notas baixas e riscos para a saúde mental, respectivamente. Isso significa que a ruptura familiar e suas consequências seriam possíveis responsáveis por sintomas – tais como depressão, ansiedade, bipolaridade, hiperatividade e déficit de atenção em casos mais graves – que prejudicam a criança nas suas habilidades sociais e na relação com a família e escola.

O motivo desses resultados é desconhecido pelo neurologista organizador do “Projeto Atenção Brasil: Saúde Mental e desempenho escolar em crianças e adolescentes brasileiros”, Marco Antônio Arruda, já que a pesquisa é populacional e não longitudinal, ou seja, baseada em um questionário respondido por pais e professores, e não em um acompanhamento científico dos jovens durante um período. “Nesse tipo de estudo só conseguimos identificar o momento da população, não dá para saber os efeitos, mas fatores de risco. É a mesma situação de falar que o fumo, o colesterol e a pressão alta são fatores de risco para doenças cardiovasculares. Estabelecer a relação de causa e efeito, no entanto, só se acompanharmos o indivíduo por certo tempo”, explica. Foi justamente com o objetivo de minimizar esses fatores de risco que o médico teve a iniciativa de realizar a pesquisa, que foi publicada em formato de cartilha para educadores com o propósito de ensinar a trabalhar em sala de aula questões que afetam o desenvolvimento escolar das crianças e adolescentes.

A partir dos resultados da pesquisa, no entanto, ficam as dúvidas: os filhos vão mal na escola pelo simples fato de terem pais separados? A separação é uma garantia de baixo desempenho? As crianças com pais casados não têm o mesmo tipo de dificuldade? A psicóloga e psicopedagoga Maria Cecília Nascimento esclarece que a questão não é tão simples. “Há uma estreita relação entre lar e escola, por isso uma grande parte dos problemas educacionais infantis continua a ser originado no lar. O relacionamento entre pais e filhos e a harmonia do casal são elementos fundamentais para a obtenção de um bom desempenho escolar, no entanto ressalto que minha experiência profissional em consultório demonstra que filhos de famílias estruturadas também apresentam dificuldades escolares”, observa. Segundo ela, não há duvidas de que o que acontece no âmbito familiar da criança, como a separação dos pais, interfere no seu emocional, podendo apresentar comportamentos prejudiciais no desempenho escolar, mas essa é apenas uma possibilidade que é minimizada quando os pais, mesmo que separados, dão atenção e participam da educação dos filhos. “Estes aprendem mais e melhor com o apoio dos pais, sentindo-se mais seguros, motivados, estimulados e com vontade de aprender.”

O fator que define se uma criança é ou não afetada por esse tipo de evento familiar pode estar ligado ao que o Dr. Arruda se refere como “resiliência”, que seria a competência da criança a se adaptar e lidar com uma situação difícil separadamente da sua vida escolar. “Na física, resiliência é a capacidade de um material sofrer transformação e voltar ao seu estado original, como a borracha e o elástico. Esse conceito foi transferido para a saúde mental infantil e crianças com alto desempenho escolar e bons índices de saúde mental são consideradas altamente ‘resilientes’. São capazes de sofrer o impacto e, com a perda, não se deformarem, e sim voltarem ao seu estado original”, explica.

Para Luciana, do Colégio Oswald de Andrade, a forma como a criança lida com uma perda familiar – a exemplo de um divórcio – e como isso influencia seu desempenho escolar depende de sua estabilidade emocional, da estrutura e rotina que os pais estabelecem para ela ou não e de questões práticas como a lição de casa, que depende de livros que são esquecidos na casa do pai ou da mãe. “O problema é que às vezes os filhos ficam abandonados, por exemplo no computador, sozinhos, e não têm uma orientação e cobrança adequada porque os pais estão preocupados demais com a separação”, afirma. Ela defende que o problema não é a separação dos pais, e sim como eles deixam esse fato influenciar a vida do filho – se houver muitas brigas com o filho no meio, se a criança é o único canal de comunicação entre os pais, se não existe uma rotina e organização acompanhada pelos pais, se há abandono, esses são todos fatores que, dependendo da criança, podem afetar suas notas. “Muitas vezes o aluno é inteligente, capaz, esperto, mas não entrega os trabalhos. Outros têm nota baixa por dificuldade de aprender e compreender, apesar de se esforçarem. Mas, em princípio, não existe nenhuma correlação entre nota baixa e pais separados. Muitas vezes pais separados funcionam melhor para o filho do que pais juntos que não conseguem se entender em relação à criação e rotina escolar do jovem”, diz.

O papel do educador

Apesar da condição da separação dos pais não ser uma garantia para que a criança vá mal na escola, muitos alunos enfrentam essa dificuldade em maior ou menor grau. Nesse cenário, os professores em diversos casos são os primeiros a presenciar mudanças no comportamento desse aluno e cabe a eles identificar a fonte do problema e prestar ajuda, seja no âmbito escolar, seja no encaminhamento para um especialista. “Hoje o tempo que os pais têm para ficar com os filhos é inferior ao do professor, por isso elaboramos uma cartilha para que o educador esteja informado e, diante de um aluno com dificuldades, saiba investigar fatores de risco e corrigi-los”, diz Arruda.

A psicopedagoga Maria Cecília aponta que o professor deve estar atento a mudanças de comportamento do aluno, já que suas dificuldades podem vir à tona de diversas maneiras. “Algumas se mostram mais dispersas, apáticas, não demonstram interesse e envolvimento com as atividades. Outras são hiperativas e agitadas”, diagnostica. Independentemente de como a criança ou adolescente demonstra em sala de aula os problemas que está enfrentando com por conta da separação dos pais, Luciana, do Oswald de Andrade, defende que deve haver um canal aberto para conversa entre alunos e professores. “Cada escola lida com a questão de uma maneira. Na nossa, é muito fácil de perceber quando o aluno está passando por esse tipo de dificuldade, pois eles conversam com os professores, existe uma relação de diálogo”, conta. “Às vezes o aluno não fala, mas se ele não está bem isso começa a aparecer em forma de baixo rendimento. Quando aquele aluno que sempre fez as atividades começa a deixar de fazer ou então fica calado o educador percebe e sempre procura conversar com esse jovem, depois fala com a coordenação e, em geral, a escola chama os pais.”

Luciana defende que, nesse tipo de situação, sejam abordados aspectos exclusivamente escolares, como por exemplo por que os pais não conseguem organizar um ambiente de estudo propício para o filho. “A escola tem que tratar das coisas escolarmente pois não é clínica, não faz terapia. O que ela pode fazer em benefício do aluno é em âmbito escolar e isso é muito importante. Pode ajudar ele e a família a se organizarem melhor, mostrar para os pais quanto o filho está sofrendo, procurar alternativas e soluções”, argumenta. Cecília concorda e acrescenta que a coordenação deve explicar aos pais “que a participação na vida acadêmica de seus filhos pode influenciar de modo efetivo o desenvolvimento escolar”.

A cartilha proposta pela pesquisa do Instituto Glia sugere que os professores invistam na “educação para a resiliência”, ou seja, no fortalecimento da criança e adolescente para que ele se desenvolva com mais força e estrutura, capaz de sobrepor obstáculos sem traumas. Segundo o documento, fazem parte da educação para a resiliência a empatia com o jovem, o estímulo de uma comunicação eficiente, a valorização desse aluno e de suas características, e a ajuda para lidar com erros, responsabilidades, para resolver problemas, tomar decisões e desenvolver a disciplina e a autoconfiança.

Todos por um

Liliane Guimarães faz parte de uma equipe de cinco psicólogos que trabalham temas comportamentais com as turmas de alunos entre quatro e oito anos da Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. A questão da separação dos pais tornou-se tão forte e recorrente na sala de aula que os professores pediram aos psicólogos a elaboração de uma aula especial para discutir o tema com as crianças. O conteúdo da aula, que Liliane publicou no site do Ministério da Educação, tem como objetivo fazer com que os alunos expressem seus sentimentos em relação à separação dos pais, discutam, tirem dúvidas e reflitam sobre a questão em detalhes – como viver em duas casas diferentes, como lidar com outros parceiros do pai ou da mãe etc. “Nossa proposta é fazer esse trabalho no coletivo da sala de aula, porque individualmente pode configurar em atendimento clínico e nosso objetivo é atender um grupo de crianças em uma perspectiva educacional, porque essas dificuldades são questões que estão atrapalhando o desenvolvimento, as relações com os colegas e a aprendizagem. Entendemos que não é uma questão específica de uma criança, a turma toda se beneficia com o diálogo”, afirma Liliane. “A expressão do luto é importante para que a criança possa vivenciá-lo de forma menos angustiante. Se ela guardar essa emoção de forma prejudicial, isso vai enfraquecê-la e reaparecer no futuro de forma muito mais intensa.” A psicóloga reuniu também livros infantis e adultos que podem ajudar professores a trabalhar e entender a separação dos pais em sala de aula.