Pesquisa revela que diferentes países acreditam que os pais precisam exigir mais ou fazer menos cobranças de seus filhos por bons resultados; especialistas discutem se essa pressão pode ser positiva ou negativa para as crianças.
Parece que vivemos uma nova guerra fria, mas desta vez o campo de batalha é a educação. Em pesquisa realizada neste ano pela Pew Research Center, as duas atuais potências mundiais – uma em franca decadência e outra em franca ascensão –, Estados Unidos e China se colocam em dois extremos quando o assunto é a pressão dos pais por um melhor desempenho acadêmico dos filhos. No gigante americano, em uma ponta da lista, 64% de sua população acreditam que os pais não pressionam seus filhos suficientemente, 21% acham que a pressão é ideal e apenas 11% que a pressão é exagerada. Enquanto isso, em outro extremo, 68% dos chineses pensam que há pressão demais por parte dos pais, 14% acham que é equilibrada e os mesmos 11% não consideram que há muita cobrança sobre crianças e jovens. No meio deste cabo de guerra aparece também o Brasil, quinto país (entre os 20 ouvidos) com maior número de pessoas afirmando que os jovens não são exigidos o suficiente (49%), enquanto 31% pensam que há um equilíbrio ideal e 18% acham que a pressão é demais.
O estudo, realizado todos os anos pelo projeto Pew Global Attitudes Project, da Pew Research Center, empresa que conduz pesquisas de opinião pública internacionais, ouve uma média de 1000 pessoas por país e as questiona sobre uma série de assuntos, entre ele a educação, que foi inclusa recentemente no estudo. Não há um corte socioeconômico específico das pessoas ouvidas; é apenas uma amostragem fidedigna da população total de cada país, segundo Juliana Horowitz, pesquisadora sênior do Pew Global Attitudes Project. A principal conclusão, diz Juliana, é que crescentemente os alunos americanos têm um desempenho pior na escola em relação a outros países, e há uma preocupação geral de que a China tomará o lugar de nação mais poderosa do mundo, começando pela formação de “cérebros”. “De um lado, os Estados Unidos se preocupam de não estarem agindo de forma eficaz para que a China não os ultrapasse. De outro, o índice de suicídio entre os jovens chineses é altíssimo, e é possível que a razão seja essa pressão exacerbada dos pais”, contrapõe a pesquisadora.
Em vez de respostas, as conclusões da pesquisa suscitam inúmeras perguntas. A pressão dos pais e o melhor desempenho acadêmico são realmente intrínsecos e diretamente proporcionais? E essa pressão por melhores resultados na escola é sempre boa ou sempre ruim, ou existe um equilíbrio ideal? Tudo isso nos leva a uma discussão ainda maior, de proporções globais: através de modelos de educação de pressão exacerbada ou de pouca cobrança parental, que tipo de adultos e cidadãos os pais (e suas nações) planejam formar?
Para apimentar esse debate, em janeiro deste ano o Wall Street Journal publicou um excerto do livro recém-lançado de Amy Chua, “O grito de guerra da mãe-tigre”, em um artigo intitulado “Por que as mães chinesas são superiores”. A polêmica começa pelo título e não acaba mais: Amy, professora universitária nascida americana e com ascendência chinesa, defende que os pais ocidentais são incapazes de disciplinar, educar e formar filhos brilhantes como os pais orientais, simplesmente porque não são firmes o suficiente e não se dedicam para isso. Em seu livro, a mãe-tigre conta como criou suas duas filhas: sem direito de participar de festas, dormir na casa de amigos, assistir TV ou jogar videogame, escolher as próprias atividades curriculares, tirar menos de 10, participar de teatros na escola, se negar a tocar piano ou violino, ou de reclamar de não ter escolha. A lista continua. Segundo ela, um pai ideal pressiona seus filhos até o limite e ultrapassa essa fronteira, sem medo de não ser popular. Só assim, para ela, é possível criar adultos não só “de sucesso”, mas os melhores entre os melhores.
De volta ao Brasil, país onde, segundo a pesquisa, há pouca cobrança dos pais, a psicopedagoga Maria Irene Maluf, ex-presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia e especializada em transtornos de aprendizado, pondera a questão. Ela coloca que para nós, ocidentais, as afirmações de Amy soam como um exagero praticamente inconcebível, mas que é preciso parar para analisar o discurso da chinesa (apesar de americana) e enxergar um pouco de razão nele. “A questão é: não tem ser humano que saia do berço sem uma mãe por trás que o empurre e fale ‘vamos lá’. Existe um certo estímulo para ter certa performance”, argumenta. Irene não defende o modelo de Amy Chua, mas observa seus méritos. “A pessoa não está exigindo sem sacrificar nada: ela dedica tempo e energia, e a criança está percebendo isso.
Essa atenção trabalha como reforço, porque toda criança quer atenção.” A psicopedagoga considera pior os pais “largados”, que fazem com que a criança não sinta que é um investimento que vale a pena fazer, não é merecedora da atenção e que, por isso, não há razão para fazer lição e estudar todos aqueles anos. “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. No Brasil, o que tem que diminuir é essa falta total de pressão”, ela compara.
O mundo e suas zonas de pressão
“Eu não enxergaria os EUA nem a China como modelos a serem seguidos”, pondera o britânico Carl Honoré, autor dos livros “Devagar” e “Sob pressão – nenhuma criança merece superpais”. Segundo ele, existe tamanha obsessão de ambas as nações por criar pessoas que vão bem em provas que isso distorceu a educação de ambos os países, fazendo das escolas fábricas de avaliação em vez de lugares de aprendizado. O problema desse modelo é que depois de crescerem, como adultos não precisam fazer provas: necessitam de habilidades como pensar criativamente, socializar, trabalhar em grupo, comunicar-se, assumir riscos.
Com isso em mente, as nações que sempre estão no topo das listas de “melhor educação do mundo” são muito diferentes entre si, como a Finlândia e a Coreia do Sul, modelos aclamados globalmente e, ao mesmo tempo, de extrema falta de exigência, na Finlândia, e alto nível de cobrança, na Coreia. “O que esses rankings como o PISA nos dizem é que existe mais de um caminho para chegar a bons resultados. Você pode ir com o modelo de alta-pressão, favorecido pelos países asiáticos, ou pegar uma rota mais relaxada, favorecida por países como a Finlândia”, diz Honoré. “O mais interessante é que os países asiáticos acordaram para o fato que seus sistemas educacionais estão produzindo robôs passadores de exames, por isso estão olhando para países como a Finlândia para aprender a relaxar um pouco.”
Na Finlândia, que não foi contemplada pela pesquisa da Pew Global, as crianças começam a escola aos 7 anos de idade, fazem menos provas, passam menos horas na sala de aula e têm menos lição de casa que outras de sua faixa etária mundo afora – incluindo o Brasil. O professor James Greenberg, diretor do departamento de Iniciativas Internacionais da Faculdade de Educação da Universidade de Maryland e com ampla experiência em educação internacional, observa a questão da seguinte maneira: tanto a Finlândia quanto países asiáticos como a Coreia e a China fizeram um enorme investimento na educação. Mas no país escandinavo, faz parte da cultura das crianças valorizar a educação e os professores. “As crianças são propensas a absorver a importância da educação sem a pressão extra”, afirma. Já na Coreia, o investimento que o governo fez em educação vale o mesmo que a pressão dos pais, porque há fortes expectativas em relação aos resultados que aqueles indivíduos vão trazer para a nação. Para o professor, certamente ambos os países querem o melhor para os seus cidadãos, mas têm valores diferentes e por isso tomam decisões e caminhos diversos para atingir o objetivo final.
Isso nos leva de volta ao questionamento inicial: apesar de todos os modelos de educação de sucesso primarem pela formação de indivíduos que devolvam a sua sociedade todo o investimento feito neles, métodos diferentes – mais ou menos pressão, no caso – não formam pessoas diferentes na sua essência?
Marilda Lipp, professora de pós-graduação da PUC-Camp e diretora do Centro Psicológico de Controle do Stress, acredita que sim. De acordo com ela, em países em que a cobrança em cima dos jovens é muito forte, espera-se formar cidadãos voltados para competições e realizações de tarefas – ou, como pontuou Honoré, “passadores de exames”. Enquanto, em nações onde não há muita pressão por parte dos pais, a ênfase é na formação do ser humano como um todo. “Pai e mãe têm que pensar no que querem para sua família: cidadãos voltados para a realização ou mais preocupados com uma qualidade de vida geral?”, questiona. “Por isso faz sentido que um país como a China, que está avançando rapidamente no mercado internacional, esteja querendo formar realizadores, divulgar tudo o que tem. E aí países como a Itália e a França estão colocando ênfase na formação do ser humano por completo, na educação afetiva.”
Outro aspecto que diferencia esses modelos de educação, segundo Irene, é a história e o governo de cada país. Em lugares como a Finlândia e o Canadá, a postura dos pais é mais relaxada porque existe uma estrutura estatal que oferece total apoio aos seus cidadãos, inclusive se responsabilizando pela educação dos jovens. “São pessoas que deixam a criança mais solta porque têm a preocupação de criar indivíduos mais autônomos e responsáveis desde cedo. Mas o perfil socioeconômico deles permite isso, porque com um supergoverno, que supre boa parte das necessidades das famílias, existem outros tipos de preocupações”, defende. Já em países com histórias diferentes de desenvolvimento econômico tendem a ser mais duros com as crianças.
A teoria é confirmada pela finlandesa Katri Nikkanen, professora há muitos anos no país. Ela diz que a principal razão pelos bons resultados da educação da Finlândia é a estrutura de seu modelo educacional, que faz com que os pais não precisem se preocupar exageradamente com o sucesso de seus filhos – ele é praticamente garantido pelo Estado. “Mesmo pais motivados pelo sucesso acadêmico querem que seus filhos encontrem o seu lugar na sociedade. Basicamente, nós queremos formar pessoas educadas. Muitas famílias deixam suas crianças encontrarem o próprio caminho, mesmo que ele seja diferente daquele que os pais querem”, descreve.
No Brasil
Da Finlândia ao Brasil, é difícil justificar ao certo os números revelados pela pesquisa da Pew Global, especialmente por não haver um perfil socioeconômico das pessoas que responderam ao estudo. Mas qual é o modelo de educação brasileiro que reflete essa pretensa “falta de pressão” parental? Marilda Lipp defende que no nosso país existe uma confusão tão extrema em relação ao modelo educacional – que não existe como unidade – que os pais não sabem ao certo qual papel desempenhar. “Tem pais que não sabem se podem cobrar, educar, se têm direito de colocar limites. Têm medo de disciplinar. Nossos pais são tão perdidos que não sabem como proceder e isso afeta muito como vão lidar com a parte educativa”, explica. Outro tipo de pais por aqui, segundo ela, é o time dos extremamente ocupados que largam mão de disciplinar o filho em uma atitude dita democrática, mas que estraga a criança. “Criança precisa de limites, tem que obedecer, tem que receber instruções”, frisa. “No nosso país oscilamos entre os que têm medo de disciplinar, criando pessoas voltadas excessivamente para si e para seu próprio prazer, aqueles do tipo ‘realizadores’, que acham que o filho tem que ser o melhor em tudo o que faz – e tem que fazer tudo. Essas crianças são mini-executivos, não têm tempo para nada.”
Marilda defende que, entre esses dois extremos, mais comuns entre os pais brasileiros, o ideal seria encontrar um meio termo em que os pais pudessem valorizar a crianças e impor limites ao mesmo tempo. Ela alerta que a falta de um modelo educacional congruente no Brasil faz com que, na mesma sala de aula, existam alunos que seguem diferentes modelos de educação, e isso confunde também os professores, que não sabem se devem ser severos e exigentes ou mais complacentes. Alguns pais esperam que a escola dê a educação estrita que eles em casa não sabem dar, e outros reclamam quando o filho tira nota baixa, pois acham que ele deve ser poupado. “Os professores pensam: se pai e mãe não disciplinam, como eu vou disciplinar? E quem vai disciplinar essa criança? É a polícia?”
E pressão pode ser boa?
Pode, sim. Os especialistas ouvidos são unânimes ao dizer que a criança necessita certa pressão no seu desenvolvimento, mas que ela funciona como uma droga: em pouca quantidade não faz efeito e, em exagero, é uma catástrofe. “A pressão maneirosa tem que existir sempre. Sem pressão (ou com pouca), não é educação”, afirma a psicopedagoga Irene Maluf. Segundo ela, a pressão é positiva quando pode ser traduzida em motivação, atenção e acompanhamento. E é negativa quando é exercida sobre uma criança que não tem condição se se esforçar mais. Ela conta o caso de um de seus pacientes, um jovem de 14 anos que está prestes a operar de úlcera porque tem dificuldade de aprendizado e seu pai pressiona para que ele entre na melhor universidade do País. “O pai sempre vai ter desejo que o filho seja o melhor. Mas essa expectativa é excelente quando é motivação, mas péssima quando a exigência corresponde a um fardo sobre a criança. Isso é paralisante, engessa, porque é mais do que ela pode fazer”, alerta.
Marilda complementa que os pais não podem deixar que a criança decida sozinha, se autodetermine, porque sua natureza é hedonista, ou seja, ela sempre vai preferir brincar a estudar, não entende as consequências de suas escolhas no presente. E a função do adulto é apontar esses caminhos. “Os pais têm um papel fundamental para que o filho cumpra suas obrigações, mas não precisam pressionar demais”, diz.
O britânico Carl Honoré concorda, acrescentando que alguma pressão ajuda as crianças a se esforçar mais e fazer o máximo de seu potencial. “O problema é que muitas pessoas acreditam que quanto mais pressão você aplica, melhor a criança vai desempenhar. Isso não é verdade. Existe um ponto em que pressão demais se torna um tipo pela culatra”, aponta. Sendo assim, a exigência dos pais pode ser positiva, mas não é sinônimo nem garantia de melhor desempenho. Irene discorda: para ela, apesar de ser contra uma cobrança exagerada em cima dos pequenos, a pressão bem dosada garante um bom desempenho acadêmico. “Isso mesmo com crianças com dificuldade de aprendizagem, que é com quem eu lido mais. A ausência de pressão, os pais ausentes, torna raríssimo que o indivíduo seja bem sucedido. A pressão gera motivação. É aquela ambição, o desejo de crescer, que em algum momento ela foi ensinada”, defende.
As consequências da pressão exacerbada podem ser devastadoras na vida de uma criança. Marilda observa que os jovens entram em um processo de ansiedade agudo e isso faz com que a produtividade caia consideravelmente, produzindo o efeito contrário do esperado. Mas os resultados podem ser ainda piores. Em países em que se exige muito dos jovens, o índice de suicídio nessa faixa etária tem aumentado consideravelmente. A China é um deles. Em 2008, a Associação Chinesa para a Saúde Mental divulgou que os jovens chineses têm mais probabilidade de morrer pelo suicídio do que por qualquer outra causa.
Outras consequências dessa cobrança por resultados, segundo Honoré, é a perda de criatividade e de autonomia. “Eles não têm tempo ou espaço para explorar o mundo em seus próprios termos, aprender a assumir riscos e cometer erros. Não aprendem a pensar por si próprios, só sabem fazer o que os outros mandam. Também não aprendem a olhar para dentro de si próprios e entender quem são, porque estão muito ocupados tentando ser quem os outros querem que eles sejam”, afirma. Além disso, esses jovens também estão propensos a maiores níveis de stress e exaustão.
Agenda lotada
A pedagoga Ana Letícia Castro, de Juiz de Fora (MG), matriculou o filho Lucas, hoje com 8 anos, em diversos cursos extracurriculares para que ele fizesse atividades físicas e intelectuais além da escola, e também para fazer novas amizades, já que era filho único. Hoje, Lucas faz aulas de inglês, futebol e teclado. No fim de 2010, Letícia começou a se preocupar. “Ele veio demonstrar sinais de possível esgotamento esse ano. Em conversa com a coordenadora escolar de onde ele estuda, ela me relatou que ele vem se apresentando bastante disperso durante as aulas e isso, pode ser proveniente de um esgotamento”, conta. Ao conversar com o filho, ele respondeu que não queria parar as atividades por causa dos amigos. “Tive medo de estar sobrecarregando meu filho de informações e com isso ele pudesse apresentar defasagem escolar por ficar muito cansado, afinal de contas ele estava com apenas seis anos de idade e três atividades semanais diferentes, além de estudar num colégio que exige bastante dos alunos”, diz a mãe. A solução encontrada foi procurar um profissional para se certificar que não estava exigindo demais do filho. Letícia e o marido ouviram que como as atividades tinham objetivos diferentes, não havia problema. Pessoalmente, Letícia segue o bom senso. “Procuramos respeitar que o ritmo semanal dele é bem cansativo com as atividades extra que ele faz. Se ele está disposto, tudo bem. Caso contrário, colocar pressão faz com que a criança realize a atividade só por fazer e nem assimile o que está fazendo.”