Trazer para a prática da sala de aula as orientações teóricas das novas diretrizes curriculares para a educação infantil pode parecer difícil, mas a chave para um bom currículo está na observação do trabalho das crianças e na sua forma de explorar o mundo

No último mês de dezembro, as novas diretrizes curriculares para a educação infantil completaram dois anos. O documento foi o ápice de uma série de discussões que envolveram gestores públicos, pesquisadores, educadores, representantes do setor privado e da sociedade civil em torno de um único objetivo: criar princípios norteadores para a educação de crianças de zero a cinco anos válidos para todo o território nacional. O objetivo era que, em posse disso, cada rede e escola pudesse rediscutir seu projeto político pedagógico e criar um currículo ao mesmo tempo adaptado para a sua realidade e em sintonia com o ideal da educação infantil hoje. Isso na teoria. Mas na prática, como é possível transferir os valores e orientações das novas diretrizes para o dia a dia da sala de aula? Como criar um currículo prático com base nesse documento teórico?

A resposta, segundo especialistas entrevistados, certamente não é uma receita de bolo. Para chegar a um currículo que traduza os princípios das diretrizes é preciso, antes de mais nada, conhecer o conteúdo, a relevância e a ideia de infância em que essas orientações foram baseadas. Já de partida, as diretrizes definem o currículo da educação infantil como algo que é construído no cotidiano, um conjunto de práticas que unem o que a criança leva para a escola – em termos de identidade, valores, conhecimento e experiências próprias – e os saberes consagrados pela humanidade – no campo cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico. “Ou seja, currículo não é aquele que se define a priori, mas aquele que é vivenciado com as crianças a partir de seus saberes, manifestações, articulado com aquilo que consideramos importante que elas conheçam do patrimônio da humanidade”, explica Janaína Maudonnet, que soma a experiência de 14 anos como professora de EMEIs em São Paulo e hoje leciona sobre educação infantil na graduação da Faculdade Sumaré e na pós-graduação da UniFMU.

É por esse motivo que as diretrizes curriculares são e precisam ser orientações amplas e genéricas, conforme explica Maria Campos, pesquisadora sênior da Fundação Carlos Chagas e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação – Currículo da PUC-SP. O currículo toma forma própria em cada escola e cada sala de aula de acordo com a realidade e o contexto sociocultural das crianças e educadores envolvidos. “Seria impossível e indesejável que tudo fosse trocado em miúdos de uma só maneira para todo o país. Temos realidades muito diferentes, nosso país é muito grande e culturalmente rico, as próprias instituições são organizadas de forma diversa conforme a rede. Por isso chamam-se diretrizes e por isso é necessário traduzi-las para cada realidade e para cada situação”, argumenta. Ela acrescenta que, agora, a tarefa urgente da educação infantil é fazer com que esse documento ganhe vida e se transforme em currículos reais.

O ponto de partida para isso é entender como as diretrizes enxergam a criança. Janaína observa que, de acordo com o novo documento, a criança deve ser o centro do planejamento curricular. Isso significa uma quebra na estrutura tradicional de transmissão de conteúdos de professor para aluno, para a visão da criança como criadora dos próprios conhecimentos. Ela interage com o que lhe é oferecido, atribui sentido a isso e se desenvolve a partir dessa experiência. O educador é, portanto, um orientador nessa jornada, e não um transmissor de conteúdo. E o currículo, nesse contexto, é um norte para o profissional saber o que propor às crianças e que habilidades ajudá-las a desenvolver a partir disso. Isso tudo quer dizer que o eixo norteador de qualquer currículo deve ser a brincadeira – bem direcionada, planejada e com um objetivo pedagógico, é claro –, pois é através dela que a criança irá aprender.

Isso não é uma visão trazida pelas novas diretrizes, mas o fato de um documento nacional incorporar uma teoria como essa tem impactos significativos para a educação infantil como um todo no País. “As diretrizes não trazem, especificamente, nada de novo, mas reúnem um conjunto de indicações que constituem o aporte legal brasileiro, os documentos oficiais e os conhecimentos produzidos e sistematizados historicamente na área da educação em geral e, de forma especial, na educação infantil”, afirma Verena Wiggers, professora no Núcleo de Desenvolvimento Infantil da Universidade Federal de Santa Catarina e pós-doutoranda no programa de Pós-Graduação em Educação da USP.

Como começar

Partindo dos pressupostos que as diretrizes são orientações genéricas e que o currículo deve ser construído em torno da criança através da brincadeira, existem algumas maneiras de escolas e redes de ensino reformularem sua proposta curricular. A primeira delas é uma sugestão de Zilma Oliveira, especialista em educação infantil da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP de Ribeirão Preto. Ela sugere que a equipe gestora avalie quais campos de experiência (são os mais variados, definidos pelo artigo 9º das diretrizes, que vão desde experiências com linguagem corporal e verbal até as envolvendo manifestações artísticas e interações com a natureza) ela tem mais familiaridade e, em seguida, quais ainda não foram trabalhados. “O terceiro passo é observar como está sendo esse trabalho, porque não adianta a escola dizer que explora a linguagem oral, a música, etc. se isso não estiver sendo feito em um sentido inovador, despertando a sensibilidade das crianças”, afirma. Ela exemplifica que também existem músicas e linguagem na televisão e nos meios de comunicação em massa, e isso não necessariamente significa que está sendo trabalhado em um sentido educativo e de desenvolvimento da criança.

Um caminho parecido é indicado por Maria Campos. Ela também acredita que a autoavaliação é um ótimo ponto de partida na elaboração do currículo, por isso sugere que a escola se apoie nos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil, publicados pelo MEC em janeiro de 2011. O objetivo do documento é ser um guia prático para que a equipe faça um diagnóstico e elabore um plano de ação para melhorar sua qualidade de ensino-aprendizagem. “Seguindo por aí, podem chegar a um plano de mudanças que respeite as diretrizes. Para saber como se pode fazer isso e se inspirar, é muito importante conhecer experiências bem sucedidas de atendimento a essa faixa etária: como trabalha a creche Carochinha da USP de Ribeirão Preto, entre outras experiências importantes no país? Como funciona o currículo High Scope? Que ideias se pode aproveitar dessas e de outras experiências?”, aponta. Ela sugere também a leitura de livros que descrevem experiências de currículo bem sucedidas, como as de algumas cidades no norte da Itália. “Alguns desses livros explicam como conseguiram chegar a ser o que são: por onde começaram, que passos deram, quais os principais desafios que tiveram de superar, que estratégias usaram e assim por diante.”

Esse trabalho de questionamento é fundamental na construção ou reformulação do currículo. Janaína trabalha com a formação de gestores para a educação infantil olhando para os registros que eles fazem do trabalho das crianças. “Eles têm filmado, tirados fotos, registrado as atividades e a partir disso a gente discute com os educadores: a ação está na mão de quem nesse momento? Da criança ou do educador? O que a criança está descobrindo?”, conta.

O currículo

Para elaborar um currículo, segundo Verena Wiggers, é preciso pensar e sistematizar um conjunto de estratégias para as diferentes idades, características e ritmos das crianças. Para isso, o trabalho feito no dia a dia da creche e da pré-escola deve levar em conta e garantir não apenas a necessidade de cada criança, mas uma série de experiências que “promovam o desenvolvimento das múltiplas dimensões humanas, ao mesmo tempo que assegure os direitos fundamentais a cada uma delas”.

A pedagoga Renata Calasans, pós-graduada em psicopedagogia e marketing e gestão de instituições educacionais, e especialista em educação infantil especial, defende que a melhor forma de colocar a sugestão de Verena em prática é elaborar atividades que compreendam os diversos campos de experiência, que englobam a matemática, a linguagem oral e escrita, o conhecimento físico e social, entre outros, sempre através do lúdico. “É o brincar pedagógico, com a intenção do aprender”, esclarece. “Um bingo sonoro, pular corda, jogo de dardos, morto-vivo, são ótimos exemplos disso.” O gestor e o educador devem então partir das habilidades que pretendem desenvolver – e isso vai depender da escola e dos alunos – para então planejar um currículo em torno disso. Renata, que também leciona no ensino fundamental nas escolas Professora Maria da Conceição Penarocha e Henrique Freitas Badaró, na rede municipal de Ipatinga (MG), realiza um laboratório com alunos do primeiro ciclo do fundamental nessas unidades, em que trabalha dificuldades de aprendizado, e nota que a falta dessa experiência lúdica de aprendizado na educação infantil é o principal fator para que os alunos não consigam acompanhar os estudos na etapa de ensino seguinte.

Mas Janaína alerta: ainda que as concepções sobre criança como centro do currículo e da brincadeira como elemento de aprendizagem sejam um discurso comum reproduzido entre especialistas da educação infantil, ainda há um longo trajeto para incorporá-las na prática. E por isso chama a atenção dos gestores interessados em reformular seu currículo: “O foco das propostas oferecidas às crianças ainda está, na maioria dos casos, na atividade a ser desenvolvida por elas, e não nelas em si, e isso precisa mudar. As relações estabelecidas, os conhecimentos que as crianças têm sobre o que vai ser vivido, as indagações que tem sobre o mundo, muitas vezes não são ouvidas ou são desconsideradas na organização das propostas”, diz. Isso é um problema porque o aprendizado só acontece se a criança for protagonista dele. Por isso, Janaína sugere que, para colocar em prática no currículo o que dizem as diretrizes, os educadores precisam apurar seu olhar em relação às crianças e questionar o que sabem, o que gostam, como pensam o mundo, como se manifestam, o que conhecem, como conhecem. E, a partir daí, elaborar uma estrutura curricular.

Tempo e espaço

Existem outras questões que podem parecer técnicas aos olhos do gestor ou do educador, mas que devem estar presentes e detalhadas no currículo pois contribuem diretamente com o aprendizado dos alunos. Por isso, Maria afirma que precisa ser incluso no documento questões ligadas à organização cotidiana do trabalho: horário do expediente dos professores e auxiliares, como está organizado o espaço, qual é a proporção de adultos e crianças em cada turma, como estão organizados os serviços de alimentação e limpeza, horários e a organização das refeições, o horário do sono das crianças, entre outras questões. “Se não existe compatibilidade entre esses aspectos do funcionamento de uma instituição e os objetivos definidos no currículo, este ficará só no papel”, observa. Isso porque a forma como o tempo e o espaço são organizados em uma escola afeta diretamente as atividades feitas com as crianças.

Janaína explica que uma revisão curricular pode acabar com um problema recorrente, que é o controle excessivo das crianças por parte do educador, com a ideia de que elas precisam sempre estar fazendo alguma coisa juntas e em um determinado horário fixo, rígido, o que cria obstáculos para o desenvolvimento individual. Por isso ela sugere que os gestores sistematizem no currículo novas formas de trabalhar com o tempo e o espaço, por exemplo organizando cantos nas salas que ajudam o educador a separar a turma e se concentrar em pequenos grupos ou mesmo uma criança, criando um foco de atenção.

“Um espaço pobre de desafios, cheio de mesas e carteiras, com poucos materiais disponíveis, dificulta que a criança possa ampliar seu conhecimento de mundo e crie hipóteses sobre como as coisas do mundo são”, exemplifica. “Por outro lado, o contato com a natureza e os espaços externos permite que elas observem os fenômenos e indaguem sobre eles: por que a formiga consegue subir em cima de uma árvore sem cair? Porque o vento sopra? São perguntas que as crianças se fazem quando damos tempo e espaço para que elas descubram. E nos fornecem caminhos muito mais interessantes para trabalharmos com elas.”

O currículo da educação infantil precisa também amparar o professor em sua rotina de trabalho, explica Maria. Segundo ela, o educador precisa saber o que deve fazer ao chegar na escola, o que fazer com sua turma em cada momento do dia, como enfrentar os imprevistos, como adaptar seu planejamento às situações vividas e questões trazidas pelas crianças, como trabalhar com elas individualmente, em pequenos grupos e no grupo todo, como cuidar das transições entre as diferentes atividades, como conduzir nos momentos em que as crianças ficam impacientes, choram ou brigam, como proceder quando uma criança se machuca ou fica doente, como tratar os pais, como tratar os colegas, como observar as crianças, como registrar seus progressos, como buscar orientação para seu trabalho, como encaminhar suas sugestões, entre muitas outras situações. “Infelizmente nada disso se ensina nas faculdades de pedagogia. Então, se o currículo não traz orientações claras e concretas sobre esses aspectos, ele vai ficar na prateleira”, sentencia.



A experiência de Jundiaí

A rede municipal de Jundiaí (SP) reestruturou em 2010 seu currículo a partir das novas diretrizes para a educação infantil. O ponto de partida foi garantir que toda a equipe pedagógica estivesse evolvida, incluindo diretores de escola, supervisores, coordenadores e monitores. Para isso, foram aproveitados os horários de formação em serviço dos educadores. “Após essa discussão, todos os envolvidos apresentaram sugestões para o currículo, considerando o trabalho que já era realizado”, conta Janete Marini, diretora Geral de Educação Infantil da Secretaria de Educação de Jundiaí.

Foram várias etapas, começando pela discussão e redação das sugestões em cada escola, que em seguida foram levadas pelas coordenadoras para debate com as supervisoras. Redigiu-se então um documento preliminar que voltou às escolas, que releram enviaram sugestões e adequações. Com isso em mãos, a Fundação Vanzolini auxiliou a equipe da secretaria a construir a versão final da proposta curricular.

Para Janete, uma das questões mais relevantes trazidas pelas novas diretrizes do MEC foi a ideia dos campos de experiências. “Isso nos permitiu redigir um documento com propostas organizadas por faixa etária e por tipos de experiência, garantindo o processo de cuidar e educar integrados, ou seja, sem fragmentação do conhecimento”, afirma.

Por causa da gestão democrática e do envolvimento de todos no processo, a implementação do currículo não encontrou maiores dificuldades. Janete conta que, quando ele ficou pronto, todos já o aguardavam como ferramenta facilitadora, e não como um novo documento ao qual teriam que se adequar. Janaína Maudonnet observa que isso é a chave para o sucesso na implantação de um novo currículo: “Ao escutar a família, os educadores, os funcionários e as crianças, o gestor vai pensar nas suas ações por diversos pontos de vista, aprendendo assim a organizar a instituição e a planejar melhor. Se toma sozinho as decisões, não dá a oportunidade dos outros problematizarem e trazerem questões.”



Os campos de experiência nas diretrizes

O artigo 9º nas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil estabelece uma série de categorias de experiências que devem ser garantidas através do currículo por todas as escolas e redes, sempre através do lúdico e da brincadeira. O documento deve não apenas trazer atividades que passem por esses campos, mas que os integrem. De maneira simplificada, os campos de experiência são os seguintes:

1. Experiências sensoriais, expressivas e corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade, conhecimento de si e do mundo e respeito pelos ritmos e desejos de cada criança;

2. Expressões gestuais, verbais, plásticas, dramáticas e musicais devem ser trabalhadas através de diferentes linguagens;

3. Desenvolvimento das linguagens oral e escrita através do contato com experiências narrativas e diferentes textos;

4. Trabalho com relações quantitativas, medidas, formas e orientações espaço-temporais, sempre em contextos que façam sentido para a criança,

5. Ampliação da confiança e da noção de trabalho individual e coletivo;

6. Desenvolvimento da autonomia em situações de cuidado pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar;

7. Trabalho com a diversidade e interação com crianças e experiências de diferentes culturas, com o objetivo de ampliar os padrões de referência e as identidades;

8. Experiências que instiguem a curiosidade, a exploração, o encantamento, o questionamento, a indagação e o conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza;

9. Contato e interação das crianças com manifestações diversas de artes (música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura);

10. Desenvolvimento da noção de sustentabilidade, do não desperdício e da preservação da biodiversidade e recursos naturais;

11. Apresentação das manifestações e tradições culturais brasileiras;

12. Acesso a recursos tecnológicos e midiáticos (gravadores, projetores, computadores, máquinas fotográficas etc.).