Organizar o tempo e o espaço na educação infantil pode ser um desafio, levando em conta que diferentes crianças têm diferentes necessidades. Nesse contexto, como criar uma rotina que encontre um equilíbrio entre a necessidade dos horários e a autonomia dos pequenos?

Trabalhos infantis espalhados pelas paredes indicam que entramos em uma escola de educação infantil. Mas não é só isso. Conforme ingressamos, parece que fazemos parte de um mundo em miniatura. Cadeiras e mesas alcançam nossos joelhos, há almofadas espalhadas pelo chão, caixas com brinquedos e fantasias no mesmo nível, e estantes de livros, pias e vasos sanitários estão instaladas em uma altura que exigiria que um adulto se dobrasse todo para usá-los. Os espelhos estão alinhados de forma que, lá de cima, só vemos nossas pernas.

Todos os ambientes são ocupados com uma atividade diferente. No parquinho, uma turma se prepara para deixar os brinquedos e almoçar. No lactário, alguns bebês fazem sua refeição enquanto outros estão em uma sala diferente participando de uma atividade. Em um ambiente próximo, no escuro, outras crianças se aninham em berços, colchonetes, carrinhos e colos, para tirar uma soneca. O lugar inteiro está vivo e, para os desavisados, pode até parecer uma desordem. Mas não é: nos corredores, quadros afixados mostram a rotina da creche daquela semana. A ocupação dos espaços em diversos tempos nada mais é do que uma dança coreografada com a ajuda das crianças.

A escola em questão é a Creche Central da Universidade de São Paulo (USP), que mostra um equilíbrio entre a rotina com atividades planejadas e a liberdade das crianças para dar um novo rumo a essa programação coletivamente, ao mesmo tempo em que têm a opção individual de descansar, ou de ir para um canto da sala e escolher um objeto diferente para interagir.

A forma como uma escola de educação infantil decide organizar o tempo e o espaço fala muito sobre o seu projeto pedagógico, sobre o que sua equipe pensa a respeito da tão discutida rotina, e sobre o protagonismo da criança (aliado à descentralização da figura do professor) naquele ambiente. Afinal, existe uma dicotomia entre a escola ser um lugar para que a criança aprenda a socializar, ao mesmo tempo em que crie autonomia e se desenvolva como indivíduo. E em determinado momento, um educador pode se ver confrontado no dilema de respeitar o tempo de cada um – crianças pequenas querem comer, dormir e brincar em horas diferentes – e envolver todos em uma mesma atividade. Mas será que esses dois polos são mesmo opostos?

Rotina

Conciliar diferentes tempos, para especialistas, depende da rotina estabelecida pela escola – enquanto uma rotina muito rígida não irá admitir que as crianças tenham a flexibilidade da qual precisam, a falta dela não permite um trabalho minimamente estruturado por parte da escola. Segundo Janaina Maudonnet, coordenadora do Centro de Formação e Pesquisa em Educação Infantil Pedagogia com a Infância, existe um estigma em torno da palavra “rotina” que remete ao tédio e ao rígido. “As instituições educacionais são muito marcadas pela ideia de que rotina é o equivalente a todo mundo fazer a mesma coisa ao mesmo tempo o tempo todo”, diz. Mas isso não precisa ser verdade.

Janaina explica que a rotina é o alicerce das crianças, pois permite que elas antecipem o que farão, e assim tenham mais segurança em suas tentativas. “Não saber o que vai acontecer reduz a autonomia, porque a criança vai sempre perguntar ao adulto: o que faremos agora? Além disso, a rotina não quer dizer necessariamente repetição. Elas têm oportunidade de testar suas habilidades, tentar de novo o que haviam iniciado antes, reorganizar e reviver experiências”, observa. O problema, para a especialista, não está na ideia da rotina em si, mas em desconsiderar a singularidade dos sujeitos e tratá-los homogeneamente.

Na creche da USP, que atende a 180 crianças entre 4 meses e 5 anos, o primeiro passo para estabelecer a rotina – ou seja, a articulação entre espaço e tempo – foi conhecer o perfil do público da escola. Mapearam, então, a existência dos pais que começam seu expediente no trabalho às 8h, e precisam deixar os filhos logo que a creche abre, às 7h. Enquanto isso, muitas crianças com uma outra dinâmica familiar chegam mais tarde. Por isso, a equipe criou um horário de entrada elástico, que atende a toda a demanda. As atividades desse período independem de ter uma turma formada, e crianças de diferentes idades podem participar de atividades conjuntas. “Não significa deixar aberto para a criança fazer o que quer, mas pensar em um momento em que o grupo vai se formando de maneira que podemos realizar uma atividade em que crianças de diferentes idades consigam brincar e participar entre elas”, afirma o pedagogo Rodrigo Flauzino, coordenador pedagógico da Creche Central.

Rodrigo explica que o importante da rotina é permitir que o educador consiga planejar e estruturar um trabalho de qualidade sem que isso engesse as atividades do dia. Já que as crianças pequenas não possuem uma noção exata de tempo, é importante que a rotina as ajude a desenvolver uma percepção da sequência de ações – que não é sempre repetida, mas que segue alguma lógica. A criança aprende, então, por associação de acontecimentos. Por exemplo: quando chega o carrinho da comida, os pais precisam ir embora. Depois do almoço, chega outra professora. Depois de lavar as mãos, precisa ir para a sala. “Na medida em que a criança vai percebendo essas passagens, fica mais segura, perde a ansiedade”, afirma Rodrigo. “Existe o elemento da surpresa no dia a dia, mas tem a tranquilidade quando ela percebe que existe um fio condutor do dia, uma regularidade.”

Algo importante na construção da rotina é ter o planejamento e o inusitado. O planejado são as horas das refeições, as propostas de atividade do dia e a articulação dos diferentes espaços entre as turmas. O inusitado é saber mudar de planos se o sol está forte ou se chove nas áreas externas que seriam utilizadas, se uma ou outra criança está mais difícil para comer ou se precisa dormir, ou simplesmente permitir que a proposta mude de curso. “Às vezes o educador planejou a atividade, trouxe um livro, mas o que desencadeia o interesse no grupo é uma criança que trouxe uma foto do irmão que acabou de nascer”, diz Rodrigo. Assim, os professores precisam ter a maleabilidade para reduzir uma atividade que não está engajando a turma, estender outra com a qual os pequenos se envolveram e mudar o rumo de outra de acordo com a colaboração das crianças.

Criança em foco

Essa flexibilidade está muito relacionada com o quanto o projeto pedagógico da escola permite que a criança seja protagonista do seu aprendizado e descentralize toda a condução da atividade do foco do professor. “Se as crianças são consideradas sujeitos de direito e produtoras de cultura, a organização será realizada com elas; se são consideradas como futuros adultos, provavelmente a organização será realizada para elas”, afirma a professora doutora Maria Letícia Nascimento, do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada
da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Segundo a especialista em educação infantil, os dois diferentes olhares sobre a criança permitem compreender por que diferentes rotinas são oferecidas em diferentes instituições. Letícia argumenta que rotinas marcadamente repetitivas – ela cita um exemplo existente em um texto acadêmico que estabelece segunda-feira como dia de música, arte, desenho e história; terça de desenho, história, musica e arte e assim sucessivamente – ou excessivamente “quadradas”, com horários para fazer cada atividade – exemplo: às 8h15 é a chegada, das 8h16 às 8h36 é lavar as mãos etc. – abrem espaço para o questionamento: onde estão as crianças nesse tipo de organização do tempo?

“Há rotinas que preveem regularidades, mas giram em torno das crianças e seus interesses e possibilidades. O livro O dia a dia nas creches e pré-escolas, da Artmed, e as traduções dos italianos nos revelam esse trabalho com as crianças, que parece dar conta da curiosidade infantil e da responsabilidade adulta”, defende. Para Letícia, a melhor forma de conciliar diferentes tempos das crianças é oferecer diversas atividades em campos simultâneos, para que elas possam participar daquilo que as interessa e atrai mais, e que responde às suas necessidades.

O espaço

Os mesmos preceitos se aplicam à organização do espaço na educação infantil. Se a escola coloca o foco na criança, é condizente que o espaço seja adaptado para proporcionar esse protagonismo. Mobiliário adequado para a idade, prateleiras baixas, e livros e brinquedos ao alcance são alguns elementos indispensáveis na escola. Além disso, os espaços precisam conter elementos que convidem as crianças à interação. Na creche da USP, por exemplo, os objetos tem múltiplos propósitos. Um deles pode servir para fazer música, se esconder dentro ou montar um castelo. Outro pode ser um colchonete para exercícios, atividades na sala ou hora da soneca. Variar o espaço também é interessante para a criança. Na escola de educação infantil Carinha Suja, em São Paulo, as educadoras propõem atividades no corredor, na quadra, na biblioteca, na sala de vídeo, mesmo que possam usar a sala de aula. “Tentamos tornar o espaço da escola agradável e deixar tudo ao alcance das crianças para incentivar a autonomia”, diz Célia Pisati, coordenadora pedagógica. “Como cada criança tem uma necessidade, algumas se expressam melhor na quadra com os amigos, outras não.”

Janaina Maudonnet explica que é fundamental organizar espaços (ou os chamados “cantos”) em que as crianças possam se organizar em pequenos grupos ou ficar sozinhas quando sentirem necessidade. “Quando estão concentradas nesses cantos, elas não necessitam da atenção constante do professor, que pode se concentrar em algumas crianças por vez de modo a conhecê-las mais profundamente”, afirma. “Por isso, é preciso prever cotidianamente tempo para que as crianças possam trabalhar em diferentes agrupamentos, com espaços desafiadores.”

Segundo Rodrigo, da creche da USP, o espaço não é imparcial, é um segundo educador. “Então a forma como organizamos o espaço diz algumas coisas”, coloca. Conforme as crianças vão chegando, os materiais estão disponíveis e organizados em cantos. A partir disso a criança cria uma dinâmica e, a partir dela, a educadora pode colaborar e modificar a brincadeira com uma proposta. “A criança tem o papel de brincar livremente, mas não significa que o educador tem postura passiva na educação. Ele promove brincadeiras e organiza o espaço”, complementa. Na creche os espaços e tempos são articulados nesses momentos independentes, em momentos coletivos (de 60 a 80 crianças no mesmo espaço sendo orientadas pelos professores) e na hora do pequeno grupo, em que crianças de uma mesma faixa etária interagem. Dessa forma, elas têm diversas possibilidades de atividade de acordo com o grupo, o momento e o espaço em que estão inseridas.


Como organizar o tempo e o espaço?

  • A criança precisa de rotina, mas isso não significa que ela deva ser engessada em horários e uma sequência de atividades repetitivas;
  • É importante proporcionar momentos em que a criança pode escolher ficar sozinha ou brincar com os colegas;
  • Também é interessante criar momentos em que crianças de diferentes faixas etárias possam interagir umas com as outras;
  • O planejamento é importante como base da proposta, mas o desenrolar da atividade depende do envolvimento das crianças – considere reduzir aquilo que não as interessou, ampliar aquilo que está gerando bons frutos e mudar o rumo da atividade de acordo com a contribuição dos pequenos;
  • Espaços diversos permitem uma maior variedade de possibilidades;
  • O mobiliário deve ser adaptado à faixa etária dos alunos e os brinquedos e livros devem estar acessíveis ao alcance;
  • Considere inserir nos espaços objetos que sirvam a múltiplos propósitos e usos;
  • A hora da entrada depende da dinâmica familiar das crianças, e pode ser vantajoso criar um horário elástico com atividades que independam da turma estar completa ou de todos terem a mesma idade.



  • Questionamentos

    “O modo como respondemos a todas essas questões é que nos dará pistas sobre como organizamos, a partir dos nossos contextos, nossos tempos e espaços de convivência”, observa Janaina Maudonnet. Confira algumas perguntas que os educadores devem se fazer ao organizar o tempo e o espaço, de acordo com a especialista:

  • A instituição é de fato voltada para as crianças ou é pensada para os adultos?
  • Em que medida as crianças e suas singularidades tem sido contempladas? Como temos pensado sobre isso?
  • Que momentos da rotina precisam efetivamente ser coletivos, no sentido que todos fazem algo juntos?
  • Como contemplar a diversidade mesmo em momentos coletivos, como a hora do almoço, por exemplo, considerando que nem todos comem no mesmo ritmo?
  • Cremos na criança como centro e na garantia de sua singularidade?