Em Água Boa (MT), a rede municipal conseguiu diminuir radicalmente seus índices de evasão na EJA ao criar um sistema de educação no campo em que os alunos passem menos tempo na escola, aprendendo teoria, e mais tempo na zona rural, onde vivem e trabalham, aplicando os conhecimentos em seu cotidiano

Na porção média do Vale do Araguaia, próximo à fronteira de Goiás e distante 650 quilômetros de Cuiabá, está o município de Água Boa (MT), com pouco menos de 21 mil habitantes e um grande desafio: melhorar, através da educação, a qualidade de vida de jovens e adultos que, passada a idade ideal de conclusão da escola regular, precisam finalizar sua escolarização por meio de cursos de EJA. Mas o desafio é ainda maior: sendo um local com a baixa densidade de menos de três pessoas por quilômetro quadrado, todas as escolas da rede municipal de educação estão espalhadas no campo, muito distantes uma das outras, dos alunos e da secretaria.

O resultado dessa equação era a evasão escolar em massa no nível de EJA, deixando a maior parte da população do município, moradora da zona rural, à mercê das dificuldades trazidas pela falta de educação: baixa renda, baixa autoestima e menor autonomia, formação e perspectiva profissional.

A partir de 2005, diante desse problema, a rede municipal de Água Boa desenvolveu e implementou um novo programa de EJA com o objetivo de manter os alunos na escola e, ainda, tornar os estudos parte do que eles viviam na realidade da agropecuária, adaptando o currículo para aproximar teoria e prática. “A proposta foi fundamentada na preocupação com o atendimento desta demanda de EJA e, ainda, com o intuito de oferecer oportunidades ao homem do campo, em seus diferentes contextos, condições de acesso e permanência na escola e na educação formal, sem, contudo, se desligar de suas atividades cotidianas”, descreve Julienne Vieira, coordenador das Escolas do Campo da Secretaria Municipal de Educação.

Vieira explica que, para formatar o programa de EJA, sua equipe se baseou na pedagogia da alternância, nascida na França na década de 1930 a partir do conceito de Casa Familiar, e segundo a qual o aluno da educação no campo tem seu tempo dividido no período que ele passa na escola – que é reduzido em relação ao ensino regular – e a aplicação desses conhecimentos no seu cotidiano no campo, também acompanhada e avaliada pelo professor, criando uma relação direta entre a escola e a melhoria das condições de vida de jovens e adultos.

Na prática, funciona da seguinte maneira: 50% da carga horária, 10 horas, são feitas na escola e condensadas em dois dias da semana, para que os alunos não sejam obrigados a ir ao colégio todos os dias por conta da dificuldade de transporte, distância, trabalho e família (em geral o público de EJA tem filhos para criar). Esse é o chamado “tempo escola”. Nesse período, os professores definem uma “temática geradora”, assunto que vão trabalhar de maneira interdisciplinar durante seis meses, e passam aos estudantes propostas de aplicação prática do conteúdo visto em sala de aula. Esse período, que equivale à outra metade da carga horária, é definido como “tempo casa”, que não é o mesmo que lição de casa. No tempo casa, os alunos devem desenvolver atividades propostas pela escola como se estivessem em período de aula, e recebem visitas de acompanhamento do professor. “A temática geradora é discutida e definida coletivamente pelo grupo de alunos e professores da escola com base na realidade de cada comunidade. A partir daí, o professor tem a função de estabelecer primeiro às relações entre as diferentes áreas de conhecimento e depois a definição das atividades no tempo escola e no tempo casa”, complementa Vieira.

Os resultados dessas atividades e pesquisas feitas em casa a partir do conteúdo dado em sala de aula são apresentados pelos alunos, a cada fim de semestre, à comunidade escolar em formato de seminários que, de acordo com Vieira, têm como principal finalidade socializar os resultados alcançados.

Na Escola Municipal Agrovila Central, por exemplo, os alunos de EJA têm aula às terças-feiras e aos sábados, nas quais, no primeiro semestre de 2011, trabalharam com a temática geradora “Bacia do Ribeira”. “A professora trabalha diversos aspectos da Bacia do Ribeira, geografia, português, matemática, todas as disciplinas a partir desse tema”, conta o diretor Marcelo Teixeira. A Agrovila Central está situada a 75 km da sede do município, em meio a um assentamento da reforma agrária com 423 famílias de pequenos produtores em cerca de 20 mil hectares, e por isso é um bom exemplo da realidade das escolas de Água Boa. Teixeira explica que, no início do ano, os professores de EJA fazem um diagnóstico da realidade dos alunos e, a partir daí, definem uma meta a atingir nos dois semestres e escolhem todos os conteúdos que precisam trabalhar. As atividades, então, são elaboradas em cima desse planejamento.

Adaptação do saber escolar à realidade do campo

A divisão do tempo em conhecimento teórico e aplicação prática é fundamental para o funcionamento do programa de EJA de Água Boa, mas de nada serviria se os temas trabalhados em sala de aula não fossem relacionados ao que os jovens e adultos vivem em seu dia a dia. “O mais importante do projeto é a conexão com a realidade das pessoas”, destaca Edilson Pedro Spenthof, secretário de educação do município. Teixeira, da Agrovila Central, exemplifica: “Se o professor vai falar dos tipos de reprodução, ele trabalha com isso a partir dos animais que os alunos encontram nos seus sítios”.

Essa aproximação de teoria e prática, no entanto, exige também uma adaptação curricular, já que todos os cursos de EJA devem seguir, assim como todas as outras modalidades do ensino formal, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). “Construímos um currículo coletivamente que contemplasse os indicadores estabelecidos pelos PCNs e, ao mesmo tempo, que tivesse identidade com o nosso público-alvo: o homem do campo”, afirma o coordenador das escolas do campo, Vieira. “Cabe ao professor fazer a mediação entre o currículo escolar e o saber popular, zelando pela valorização dos diferentes saberes.”

O programa de EJA de Água Boa, portanto, apreendeu todos os conteúdos exigidos pelo Ministério da Educação e deixou que cada professor escolhesse uma temática por semestre que ilustrasse, em diferentes aspectos, todo aquele conhecimento curricular exigido, mas de maneira pragmática. “De agosto a dezembro, por exemplo, vamos abordar o tema das plantas e ervas medicinais. Em cima do currículo, o professor vai puxando os ganchos para essa temática e tem seis meses para trabalhar todos os itens dos PCNs, sem ordem certa, mas com tempo determinado”, explica Teixeira, da Agrovila.

Menos evasão e mais impacto na vida dos alunos

Os resultados da iniciativa de Água Boa são radicais. De 2005 a 2010 foram atendidos aproximadamente 800 alunos de EJA, sendo que as matrículas aumentaram e o abandono escolar, principal foco de combate do programa, diminuiu para apenas 2%, índice abaixo do comum para todos os níveis da escola pública no Brasil.

Cada escola registrou suas conquistas. Antes do projeto, a Agrovila Central, por exemplo, marcava 50% a 60% de evasão, número que hoje está em 12%. As matrículas aumentaram de 13 em 2005 para 28 matrículas em 2011, e a aprovação atual gira em torno de 90% a 95%, contra 65% a 70% anteriormente. Na Escola Municipal Bela Vista, o abandono passou de 80% a 26%. “Os alunos de EJA trabalham muito no campo e, se têm aquela semana fechada de aulas, não conseguem acompanhar”, justifica Simone Freitas, professora formada em EJA que oferece reforço escolar e que foi diretora da escola durante o programa por quatro anos.

O maior impacto desses resultados se reflete na melhoria da qualidade de vida dos jovens e adultos trabalhadores do campo de Água Boa. “O projeto melhorou, sobretudo, a condição do aluno de EJA de sujeito construtor de sua própria história e agente transformador de sua realidade”, afirma Julienne Vieira. Segundo ele, o aumento da autoestima dos estudantes dessa modalidade fez com que não só mais deles se formassem no ensino fundamental, mas que muitos conseguissem ingressar no ensino médio regular após a experiência e alguns, ainda, no ensino superior. “Outro ponto a ser destacado é o envolvimento e a participação desses sujeitos com os problemas da comunidade. Percebe-se uma mudança significativa no comportamento quanto à organização social em torno de um objetivo agora visto como comum. Com essas mudanças fica fácil perceber que a sua vida pessoal também muda”, completa Vieira. Marcelo Teixeira, diretor da Agrovila Central, adiciona: “A gente vê que eles não estão se perdendo no processo e em geral dão continuidade aos seus estudos”.

Teixeira observou também que o assentamento, de onde todos os seus alunos de EJA vêm, está muito mais agregado depois do programa. “Antigamente os produtores não tinham essa união, era muito fragmentado. Esse projeto está mudando o conceito de trabalho e as pessoas estão trabalhando mais em grupo e em regime de associação no campo”, relata. Simone Freitas, da Bela Vista, complementa que depois da experiência os jovens e adultos procuram usar em sua vida conhecimentos aprendidos na escola. Ela cita diversos casos: do produtor que aprendeu a aumentar sua renda na gestão da rapadura, em pessoas que melhoraram a qualidade de sua alimentação a partir de um projeto de horta doméstica da escola, em outro grupo que também aumentou sua renda por aprender um uso melhor do leite a partir da temática “derivados do leite”, trabalhada no curso.

Dentro da escola, Simone percebe maior integração entre os alunos de EJA e os do ensino fundamental. “A EJA era um ponto isolado, e quando começamos a envolver os alunos do fundamental nos seminários de EJA, agrupamos os estudantes. E uma vez que temos um grupo unido, as pessoas se valorizam, e os jovens aprendem a respeitar a cultura e experiência dos adultos e mais velhos de EJA, e isso foi muito positivo para a escola”, comemora.



Pontos fundamentais do programa de EJA de Água Boa

  • Reuniões da Secretaria nas comunidades para explicar a nova proposta e aumentar a demanda por EJA no município
  • Autonomia dos professores para definir as prioridades e abordagens mais adequadas ao contexto de sua comunidade
  • Diagnóstico do que deve ser ensinado ao grupo de alunos e alinhamento disso com o currículo nacional
  • Escolha da temática geradora, assunto abrangente com assimilação prática dos jovens e adultos, pelo qual os conteúdos do currículo e das disciplinas vão perpassar
  • Aulas teóricas, somando duas vezes por semana e dez horas, para trabalhar os conhecimentos do currículo
  • Proposta de aplicação prática, na qual alunos devem desenvolver atividades e pesquisas onde moram ou trabalham com base no que aprenderam na sala de aula
  • Acompanhamento e orientação do professor, que visita os alunos em casa para dar respaldo em relação ao desenvolvimento do trabalho
  • Seminários apresentados pelos alunos de EJA para a comunidade escolar, com os resultados de tudo o que aprenderam e aplicaram no semestre

O papel do professor de EJA

Segundo Marcelo Teixeira, diretor da Escola Municipal Agrovila Central, o programa de EJA de Água Boa propiciou um contato mais próximo entre professor e aluno. Isso porque o educador vai à casa do estudante e acompanha de perto o seu desenvolvimento. “A peça fundamental para o projeto dar certo é o professor. Se ele não tiver identidade com o projeto e ganhar a confiança do aluno, não funciona”, ele aponta. Simone Freitas, professora da Escola Municipal Bela Vista, complementa que o professor de EJA é especial nesse processo porque é ele quem motiva e faz o aluno acreditar que é possível e concluir os estudos. Na prática, o programa de EJA do município também melhora a gestão de tempo do educador. Como ele só está em sala de aula durante dois dias da semana, tem um deles para dedicar ao planejamento, diagnóstico e avaliação de como o trabalho está sendo conduzido, e nos dias restantes ele visita os alunos em casa para oferecer orientação e acompanhar o trabalho. “Assim, se houver algum problema no meio do processo, o professor pode parar e pensar em que ação pode tomar para mudar o curso. Antes, ele não tinha tempo para planejamento, só dava aulas, ficava sobrecarregado e não tinha a oportunidade de trabalhar com aluno”, coloca Teixeira.