A Festa da Achiropita carrega, há 93 edições, narrativas de imigração, exclusão, identidade e (muita) comida

Quem mora em São Paulo muito provavelmente já ouviu falar, pelo menos pela televisão, da famosa (e centenária) Festa de Nossa Senhora Achiropita, que reúne todo ano milhares de pessoas no bairro do Bixiga. Tudo nessa festa de rua remete à imagem de uma Itália mítica que ficou impressa no cantado sotaque paulistano: cores da bandeira, músicas tradicionais, multidão e gritaria, religiosidade e, principalmente, comida típica em abundância. Mas o que sabemos de fato sobre a vida dos imigrantes italianos que viveram e prosperaram em São Paulo? Quais eram seus costumes? E suas diferenças entre si? Qual a relação que temos com suas raízes? O que, afinal, ela mantém de original e por que mudou? E o que E o que a Festa da Achiropita nos ensina sobre tudo isso?

Muitas Itálias

Essa história começa com o fim oficial da escravidão e o incentivo brasileiro à imigração de mão de obra branca e europeia no final do século XIX, como aprendemos na escola. A maioria era italiana: 1 milhão de pessoas vieram de 1870 a 1920, entre os 2,5 milhões que desembarcaram no período. Mas o que pouco se discute é que houve três grandes ondas de imigração italiana e que o perfil dessa população era extremamente diverso. Em uma Itália recém-unificada, mal existia a ideia do que era ser italiano: o novo território era marcado por profundas diferenças (e disputas) linguísticas, socioeconômicas e culturais.

Houve, assim, italianos que desconhecessem a lasanha ou o macarrão ao pomodoro até chegar ao Brasil e conviver com conterrâneos de outras regiões, como conta a pesquisadora Janine Collaço, professora de Antropologia Social na UFG (Universidade Federal de Goiás). “O italiano como língua unificada foi um produto tardio, muitas vezes não conseguiam nem mesmo se comunicar”, afirma em sua tese de doutorado sobre cozinha italiana e construção identitária em São Paulo, onde permaneceram cerca de 70% dos italianos aportados no Brasil. “Portanto, não é surpresa que a cozinha também fosse bastante diferenciada, embora nada seja dito em termos oficiais.”

O Bixiga, bairro da Achiropita, era habitado por italianos do sul – predominantemente calabreses. A professora Janine diferencia o perfil desses imigrantes: os mais pobres, vindos especialmente de 1902 a 1920 das regiões da Calábria, Campânia, Basilicata e Puglia (sul), eram em grande parte analfabetos, trabalhadores braçais e preferiram a cidade. Quem veio do norte em geral já chegava com contrato de trabalho, muitos qualificados profissionalmente.

Havia rivalidades e preconceitos entre esses dois grupos. Quem era do sul considerava o norte esnobe, e estes questionavam a moral para o trabalho dos sulistas, julgando-os preguiçosos. “Demorou para homogeneizar a imigração. É uma disputa quase não dita entre eles, mas é possível perceber a partir de como falam da comida: de pobre e de rico, bem feita e mal feita etc.”, explica Janine. “A comida da Achiropita era [considerada] ‘de pobre’, mas ganhou status ao longo dos anos por causa da festa, quando os descendentes também foram assumindo papéis de destaque na sociedade.” No início, no entanto, a comida italiana era vista pelos brasileiros com desconfiança e circulava apenas entre os italianos.

Aos poucos, a produção caseira de pães e massas começou a chegar aos paulistanos pelas mãos de italianos comerciantes. Havia cerca de 50 pastifícios apenas no bairro do Bixiga, além de muitas cantinas e padarias – algumas delas ativas até hoje. A comida unia os imigrantes em torno de uma ideia de italianidade que se formava e os vinculava a um passado comum. Isso amenizava o cotidiano e a transição ao mesmo tempo em que os diferenciava dos imigrantes de outras nacionalidades.

Uma festa centenária

É nesse contexto que se insere o início da Festa de Nossa Senhora Achiropita, quase tão antiga quanto a chegada dos calabreses ao Bixiga. Maria Emília Conte Moitinho, relações públicas da festa e parte da comunidade da igreja desde a infância, conta que a devoção dos italianos do sul à Nossa Senhora era intensa.

O bairro, no entanto, era uma periferia desprivilegiada e praticamente rural, não havia sequer uma capela para rezar. Encomendaram em 1904 uma imagem de madeira na Itália, que chegou de navio e hoje está no centro do altar da igreja, mas que na época ficava itinerante na casa dos imigrantes. “Em agosto de 1910 resolveram fazer uma festa para arrecadar dinheiro e construir uma capela para por a imagem”, narra. “Passaram arrecadando prendas pelo bairro: leitão, cabrito, frango, pato? E as ‘mammas’ preparavam as comidas.”

As mulheres representaram uma função essencial na producão e na circulação das comidas italianas no exterior, ao sair do ambiente doméstico para aumentar o orçamento familiar e vender seus quitutes em pequenas mesas na rua e em frente aos cortiços. “Eram os embriões do que mais tarde seriam as cantinas”, segundo Janine.

A construção da igreja começou aos poucos em um terreno doado e, conforme os anos se passaram, ela pôde ser ampliada. A festa teve fases na rua e outras dentro do espaço religioso. E deixou de ser feita em anos de guerra e revolução – por isso ainda está na sua 93ª edição. Em sua pesquisa, Janine analisa que, para os imigrantes vivendo em situação de penúria, “é preciso tomar decisões de nível cotidiano que permitam conduzir a vida de alguma forma no mínimo, suportável”. Então a festa e a construção da igreja foram parte dessa estratégia de sobrevivência. Além disso, observa, à época, as celebrações também eram uma forma de rivalidade entre os bairros – como o Brás e a Mooca -, reflexo do profundo regionalismo dos imigrantes.

Há hoje no mundo apenas duas igrejas de Nossa Senhora Achiropita, a paulistana e a calabresa. O nome significa “não pintada por mãos humanas” e remonta a uma história cristã de 580 d.C., de que uma imagem da padroeira surgiu no fundo do altar da igreja que é hoje a Catedral de Rossano, na Calábria.

A festa hoje

Com todo esse processo, a celebração tem tanto de italiana quanto tem de paulistana. De qualquer forma, busca manter suas tradições. Maria Emília conta que a organização da festa é feita por cinco casais da comunidade religiosa, que se revezam ao longo dos anos, e cuidam para manter a música, as cores e as comidas italianas. “As ‘mammas‘ não gostam de dar suas receitas. Da fogazza, então, nem pensar”, afirma. “Muitas delas já morreram, cada ano tem uma a menos. Mas elas ensinam para alguém mais novo que mantém a tradição.”

Com cerca de 25 mil visitantes por ano, a Festa da Achiropita produz hoje, com o trabalho de mais de 1.000 voluntários, cerca de 17 toneladas de molho de tomate e utiliza 11 toneladas de mussarela, 18 de farinha de trigo e 11 de macarrão por edição.

Os três objetivos da celebração hoje, segundo Maria Emília, são a devoção a Nossa Senhora, a manutenção das raízes italianas e a perpetuação das obras sociais da igreja. Elas beneficiam 360 crianças e jovens de 7 a 17 anos, 180 crianças de até 5 anos, 200 pessoas em situação de rua, diversos idosos, 130 adultos para alfabetização e 40 dependentes químicos.

É o que motiva a comunidade a seguir com essa tradição centenária. Mesmo que o Bixiga, apesar de tombado como patrimônio histórico, mantenha poucas características do tempo em que os calabreses se reuniam em torno da comida das “mammas” para superar as amarguras da nova vida em uma terra distante.