O mundo seria ainda mais violento sem o trabalho desenvolvido pelos mediadores de conflitos armados, religiosos, étnicos ou familiares. Conheça alguns desses “diplomatas” – e o que a experiência deles tem a ensinar  

Mais uma manhã em um morro carioca. Na favela de Vigário Geral, um jovem de 18 anos cumpre seu primeiro “plantão” em uma das vielas, debutando como sentinela a serviço do tráfico de drogas. No meio do turno, porém, um homem de 32 anos se aproxima e avisa: “Precisamos conver­sar. Você não está agindo legal”. Em seguida, leva o menino até o gerente da boca de fumo e comunica que o rapaz não cumprirá o serviço naquela noite.

Não é qualquer pessoa que pode se interpor dessa for­ma no violento mundo do crime organizado carioca. Mas Washington Rimas, conhecido como Feijão, não é qualquer um. Aos 12 anos, ingressou na facção do Terceiro Comando e não demorou a ser considerado o braço direito do chefe na favela do Acari, assumindo o posto de tesoureiro da boca. A“carreira” de Feijão seguiu o rumo previsível no tráfico. Aos 20 anos assumiu o comando, aos 27 foi baleado e, três anos mais tarde, preso. Mas, diferentemente de muitos jovens que se envolvem com o submundo, Feijão teve uma chance de sair e recomeçar sua vida. Não a desperdiçou.

Quando saiu da prisão, estava disposto a matar para reto­mar o posto no morro. Encontrou em seu caminho o pastor Marcos Pereira da Silva. Conhecido por pregar em favelas e penitenciárias do Rio, o religioso abriu os olhos de Feijão. “Ele me alertou que a maioria dos amigos e conhecidos dele estava presa ou morta”, lembra. As palavras do pastor regaram uma idéia que já estava semeada na mente de Feijão: viver em paz. Para isso, precisava trabalhar. Em busca de um emprego, ingressou no Grupo Cultural AfroReggae, uma organização da sociedade civil que oferece formação cultural a jovens moradores de favelas do Rio e da Baixada Fluminense.

Na entidade, ele acabou assumindo um papel semelhante ao do pastor que o tirara do crime: o de mediador de conflitos. Quando levou o soldado do tráfico para conversar, Feijão contava com o respeito dos traficantes por ter sido, ele pró­prio, integrante da facção. “Quando o Terceiro Comando chega no morro, chega forte e impressiona. Até distribuem dinheiro na rua, cheios de ouro e com carro do bom. Isso seduz a molecada”, explica o mediador. Depois da conversa com Feijão, o menino decidiu voltar ao AfroReggae. “Eu disse pra ele: ‘Meu irmão, você não vai agüentar o crime, vai morrer. Tu não tem o perfil de bandido’”, relembra Feijão.

A mediação de conflitos é uma antiga solução para pro­blema igualmente antigo – a natureza violenta do homem . Os mediadores sempre existiram na história da humanidade, assim como a guerra. Nos dias atuais, contudo, a ação desses diplomatas informais, intermediários ou facilitadores de diálogo entre familiares, tribos, facções, etnias, grupos reli­giosos e nações vem sendo fundamental para que tréguas ganhem terreno em um mundo ainda intolerante e pouco amistoso. E amortecer ou prevenir conflitos violentos em diversas partes do planeta vem sendo um caminho trilhado por um número crescente de pessoas comuns como Feijão, cujo conhecimento empírico da própria realidade é a principal arma em busca da paz.

Aluta pelo fim de conflitos é muitas vezes inglória. Como se a paz fosse um estado de dormência que não merecesse registro. Até o próximo estopim. Quem se propõe a lutar por ela coloca-se no meio de dois lados antagônicos, na linha de tiro, e tem que pedir para que todos cedam, um pouco, em direção a um ponto de convergência. Às vezes a paz parece inatingível, como na disputa entre palestinos e israelenses. Mas, entre inúmeros casos de conflitos permanentes, ações individuais têm feito a diferença, ainda que em pequena escala. Mesmo que a diferença seja poupar uma única vida.

Um dos mais conhecidos mediadores de conflitos no Brasil é o carioca José Junior, coordenador do AfroReggae. Junior nunca se envolveu em atividades criminosas, mas a perda de muitos amigos fez com que se engajasse na luta contra a violência nos morros do Rio por meio da cultura. “Omediador não é um salvador da pátria, não é bom ou mau. É um guerrilheiro que ameniza problemas e se arrisca em prol de uma ideologia coletiva. Sem ideologia, não tem como fazer um trabalho como esse”, explica. Junior quebra com o clichê do reconciliador pacífico. Dependendo do caso, usa da agressividade para chamar a atenção de seus interlocutores. “Uma coisa é o mediador de uma empresa, outra é o de uma favela. Nem o bandido nem a polícia estão acostumados a ser contestados. Quando você é agressivo, abre a chance para o diálogo”, analisa. Independentemente da abordagem de cada um, Feijão acredita que, para ser um mediador eficiente, é essencial ter imparcialidade e coragem. “É importante tam­bém ter um grupo estruturado por trás, para dar respaldo. Ninguém trabalha sozinho”, acrescenta.

Em 1996, a Organização das Nações Unidas definiu o Jardim Ângela, zona sul da cidade de São Paulo, como o bairro mais perigoso do mundo (houve 209 assassinatos naquele ano; o ápice foi em 2001, com 309 mortos). Bairros vizinhos, como Capão Redondo e Campo Limpo, viviam drama parecido. A psicopedagoga Dagmar Garroux já estava no Capão quando a violência explodiu. Decidiu agir. À época, cartazes foram espalhados pelo bairro ameaçando de morte crianças de 10 anos que haviam cometido pequenos furtos. Tia Dag, como é conhecida, abrigou essas crianças para educá-las. Começou assim, em 1994, a Casa do Zezinho. Hoje, a organização atende a cerca de 1,2 mil crianças e adolescentes.

Aeducadora conta que a maioria dos conflitos nasce com a violência doméstica. Depois se manifesta na escola e na comunidade. Ela garante, porém, que a solução é única: o uso da palavra. “Todo o problema está na falta do diálogo, da pouca articulação da linguagem. Ogritar dessas pessoas é muito forte, mas o silêncio é ainda maior. Osilêncio significa que a pessoa não consegue decifrar e traduzir o que está sentindo. Uma palavra sem voz é medo. Aí ‘pumba’, ela explode”, reflete.

Tia Dag explica que o processo de mediação começa pelo trabalho da linguagem. Aos poucos, em uma mistura de con­fiança e conversa, as primeiras palavras são ditas . “Essa é a hora de interpretar. Por isso me sinto muito mais uma interpretadora de linguagem do que de conflito”, afirma. Para explicar esse processo, Tia Dag conta que certa vez en­controu queimaduras recentes nas mãos de um garoto. Ele lhe contou que, na véspera, seu irmão roubara 1 real para comprar figurinhas. Amãe descobriu e puniu ambos. Tia Dag foi conversar com a mulher, que a recebeu de maneira agressiva: “Vai me denunciar à polícia? Pode denunciar!”. Depois que se acalmou, as duas conversaram. Amulher mostrou marcas de violência física em todo o corpo como justificativa ao que fizera. “Sofri tudo isso e estou viva”, desafiou. “Viva, não. Sobrevivendo”, respondeu Tia Dag. Afrase foi o suficiente para a outra se desarmar e começar a chorar. Em seguida, contou os abusos impostos pelo pai e pelo marido. Descontava nas crianças. ACasa do Zezinho colocou seu advogado à disposição do caso e a educadora ajudou na reestruturação familiar.

A educação também foi o caminho que Jucileide Mauger encontrou para intervir. Há 30 anos trabalhando em uma escola municipal do Jardim Ângela, Jucileide viu muitos de seus alunos entrarem para o tráfico, serem presos, matarem e morrerem. “Sabe o que é ter um jovem jurado de morte e você não poder fazer nada?” Ela identificou na desestruturação familiar, causada pelo desemprego e pela violência doméstica, uma das raízes do problema. A partir de então, iniciou uma revolução local. “Começamos a fazer baile rap dentro da escola nos finais de semana. Quando tinha festa, ninguém morria”, diz. Ao levar a comunidade para dentro da escola, oferecendo cursos, palestras e atividades esportivas, Jucileide chegou a esconder alunos jurados de morte em sua sala.

Em nome de Deus

Se a educação e a cultura servem como bóia de res­gate para quem se perdeu no labirinto de um conflito, a salvação pela fé e pela religião também funciona para muita gente no Brasil. Na mesma zona sul paulistana de Jucileide e Tia Dag, o padre irlandês James Crowe, ou simplesmente padre Jaime, se tornou o elo de conexão entre a comunidade carente e projetos de capacitação profissional, prevenção à gravidez, combate à violência doméstica e oficinas de hip-hop. Padre Jaime também envolve os jovens da região em iniciativas para recuperar os córregos e mananciais da região. “Um meio ambiente saudável é o melhor caminho para a qualidade de vida da comunidade” , acredita.

Opastor Marcos Pereira, a liderança religiosa do Rio de Janeiro que ajudou Feijão a deixar o crime organizado, faz um trabalho mais radical. Após conhecer a situação do sistema prisional por dentro – ao visitar um conhecido –, passou a pregar dentro de unidades de detenção. Conheceu os principais traficantes do Rio e estendeu a pregação aos morros cariocas. Atualmente intervém diretamente na rotina do crime. Diz que já mediou – e solucionou – dez rebeliões em presídios, e se especializou em atuar em momentos de extrema violência e tensão. Com a fama nas comunidades – e também na mídia –, ganhou a devoção de milhares de fiéis. É chamado pelos moradores e pelos próprios envolvidos no conflito. “Para a população, a presença do pastor Marcos significa não só a garantia de solução do problema, mas a de que não haverá mortos no final”, explica José Junior.

Em depoimento publicado no livro Antídoto, lançado no mês passado durante evento homônimo organizado pelo Itaú Cultural e pelo AfroReggae, em São Paulo, o pastor conta como conquistou seu espaço. “Minha atitude é nunca pegar nada deles, não ter conivência, não querer saber onde moram e como vivem, de onde vêm sua droga e sua arma, pois isso não me interessa. Meu objetivo é entrar nas comunidades e mostrar que eles estão errados.” As diferentes formas de atuação mostram que não é um perfil ou causa que explica o trabalho dos mediadores de conflitos. Mas é possível compreender que, para se colocar nessa posição, é preciso dispor da autoridade de quem fala a mesma língua de seus interlocutores e conhece seus cotidianos a fundo. Econtar com a confiança de quem carrega consigo a crença de que há, mesmo nos cenários mais adversos, uma equação possível que traga a desejada paz para mais perto. Basta olhar nos olhos e negociar.

Neutralidade sem fronteiras

Em um conflito existem a prevenção, a negociação e a contenção de danos. Quando uma situação tensa resulta em violência física, a fase avançada exige outro tipo de intervenção: a do médico. Essa é a função da organização internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF), que mantém postos de atendimento à população civil em zonas de conflito do mundo todo. Mas pode ser difícil para o médico se manter neutro. “Temos que ser imparciais, não interessa quem é o paciente. Sem isso não recebe­ríamos a proteção e a confiança de que necessitamos”, observa Paulo Reis, médico da entidade que já atuou em Serra Leoa, Sudão e na favela do Complexo do Alemão, no Rio. Ele conta que há casos de tentativa de interferência de governos ou de grupos étnicos para priorizar certo tipo de paciente, o que exige do trabalho uma dose de diplomacia. Mauro Nunes, que atuou na MSF no Brasil e na África, fugiu de bombardeios. “Mediar conflitos não é nossa função. Mas, para prestarmos nosso serviço, precisamos muitas vezes assumir esse papel”, diz.

“Traidora” pela paz

Amacedônia Ljubica Spaskovska completou 10 anos quando a guerra na Iugoslávia começou, em 1991. Ela relembra que, na época, sua criação era dirigida para não discriminar amigos de outras etnias ou credos. Oconflito, porém, deformou as relações de respeito entre as populações dos Bálcãs. Aos 12 anos se engajou em uma ONG voltada para crianças refugiadas – a primeira das muitas entidades dais quais fez parte desde então.“Políticos alegavam que nos Bálcãs não podíamos viver juntos. Mas eu sabia que era mentira e tenho tentado provar isso diariamente”, afirma a ativista de direitos humanos. Mesmo com o fim da guerra, continuam os estigmas. Entre amigos e familiares, Ljubica é tachada de antipatriótica e até mesmo de traidora da nação. Não a perdoam por manter o diálogo cok os outros países da região e defender que todos devem aceitar suas diferenças – e não ignorá-las. “Quem quer fazer diferença no mundo deve aceitar e incentivar a exposição da diversidade intercultural e de opiniões”, acredita ela.