Professora americana Liz Reisberg questiona por que professores universitários continuam ensinando como se fazia no passado, enquanto os estudantes têm aprendido e obtido informações de uma maneira totalmente nova
“Não é que precisamos de novas ideias. Precisamos parar de ter velhas ideias.” A frase de Edwin Land, criador da máquina fotográfica Polaroid, resume o grande questionamento da americana Liz Reisberg sobre a forma ineficaz como a maior parte dos professores ensinam hoje nas universidades. Coordenadora do IHEC (International Higher Education Cleaninghouse) da Boston College, departamento de pós-graduação para gestores de ensino superior, Liz esteve no Brasil em novembro a convite do Centro de Estudos Avançados da Unicamp para ministrar o seminário Reconsiderando a relação entre professores, estudantes e aprendizado e defender sua bandeira: a interdisciplinaridade. Segundo ela, é preciso mudar o sistema de ensino superior para que os alunos tenham uma formação mais ampla e que englobe diferentes áreas do conhecimento, pois as profissões do futuro precisam de pessoas criativas com esse tipo de educação. Em entrevista exclusiva à Ensino Superior, Liz fala sobre a necessidade de criar novas maneiras de dar aula, os desafios para os gestores do ensino superior no Brasil e no mundo, e a urgência da mudança de paradigmas das universidades de hoje, que ficaram no passado e não têm acompanhado as rápidas mudanças de nossa sociedade.
Quais foram os principais pontos de debate do seminário?
Foi muito interessante. Falamos sobre a necessidade de repensar a forma como nós interagimos com os estudantes em uma sala de aula. Hoje, a maior parte dos professores universitários estão de pé na frente de uma sala apresentando conhecimento, mas muitas coisas estão mudando. Uma que sabemos é que a maioria dos estudantes que vem para a sala de aula está adquirindo conhecimento por meio da mídia, podcasts, internet, e estão processando as informações de maneira diferente, porque estão expostos a diferentes fontes de informação. A questão é: se os estudantes estão adquirindo informação de tantas maneiras diferentes, por que nós estamos ensinando da mesma forma que há dez anos? Nós também temos pesquisas que mostram que o estudante vai aprender, entender e reter informação se puder interagir de alguma maneira. Conversando, refletindo, analisando, reconsiderando, questionando. Eles devem estar envolvidos em um processo que os engaje intelectualmente, que seja desafiador, e isso não acontece direito apenas falando. No seminário nós falamos sobre alternativas.
Quais seriam essas alternativas?
Tem uma grande quantidade de experiências com trabalhos em grupo no MIT (Massachussets Institute of Technology) e é interessante, porque eu não sou uma pessoa da ciência, mas da educação, e eu tendo a achar que a ciência é algo fixo e imutável, e é interessante para mim que novas formas de pedagogia estão surgindo das ciências e que os professores estão dando a oportunidade aos estudantes para discutir na classe e com os outros. Em muitos aspectos, eles são estimulados a pensar, e isso demanda um envolvimento bastante diferente com ideias. Se você trabalha em um grupo com seus colegas, e cada grupo tem que convencer o outro que está certo, eles devem considerar o que sabem em muitos aspectos.
E como fazer isso?
Ken Bain publicou um livro em 2004 chamado “What the Best College Teachers Do” [publicado no Brasil apenas em inglês], e ele fala sobre tipos de aprendizado, aprendizado superficial e profundo, e o aprendizado superficial é o que a maior parte dos professores fazem. É passar informação, os estudantes escreverem, fazerem uma prova e esquecerem depois. O aprendizado profundo está ligado com o ato de envolver os estudantes de forma a pensar em novas ideias a partir de ideias antigas que eles já têm, e mudar essas ideias antigas, ou duvidar delas, e também estimular a reflexão, a dúvida de si mesmo, a empolgação, as possibilidades. Tudo isso inspira um tipo de criatividade que faz com que eles aprendam mais profundamente. Observamos também que se o cérebro faz isso, as memórias são muito mãos fortes. Se você deseja memorizar algo, você não terá sucesso. Para a maioria das pessoas, guardar algo na memória é conectar e incorporar conhecimentos anteriores. Ken escreve sobre ciência, e sua explicação é baseada em ciência, pois na medida em que sabemos mais sobre o cérebro, podemos analisar como o cérebro pensa e aprende novas informações. Ou seja, o professor fala, os alunos escrevem, mas a questão é: eles aprenderam? Não é só ouvir, ver, mas aprender.
Então isso significa que não precisamos de um professor?
O que estamos pedindo é que os professores organizem suas aulas diferentemente. Se os estudantes só podem buscar conhecimento, o professor deve conhecer sua área e seus alunos extremamente bem para saber colocar questões que os façam considerar tudo o que sabem. Eles devem pensar em como guiar seus estudantes e o que precisam perguntar para que eles entendam o material. E observamos que os professores têm muita dificuldade fazendo isso, criando essas perguntas, porque não é tão fácil quanto falar sobre um assunto. Ken Bain afirma que conhecimento não é recebido, é construído, e por isso sugerimos que os professores precisam aprender a fazer isso. Mas eles aprenderam a ensinar da maneira tradicional: passa pela boca do professor, pela caneta do aluno, mas não passa pelo cérebro de nenhum dos dois, por isso não há processo. Se você retém o conhecimento, aí então existe um processo.
Existe outro debate tão importante quanto esse hoje no ensino superior?
Outra coisa que discutimos na palestra e que é um assunto muito difícil no Brasil é interdisciplinaridade. Steve Jobs falou sobre a importância do que ele aprendeu com o criador da Polaroid, Edwin Land, que aprender é o que acontece no cruzamento das Humanidades com as Ciências. E Jobs disse que isso foi um norte para ele durante sua vida. “Eu sempre pensei de mim mesmo como uma pessoa das Humanas, mas eu gostava de eletrônicos. Aí eu li algo que um dos meus heróis, Edwin Land da Polaroid, disse sobre a importância de pessoas que pudessem estar na intersecção das Humanidades e das Ciências, e decidi que isso era o que eu queria fazer.” E esse foi um dos homens mais criativos dos nossos tempos! Então temos inovadores extremamente criativos dizendo que a ciência não cria sozinha. A tendência das universidades de fechar o conhecimento em uma só área limita o potencial dos estudantes, porque não mistura diferentes tipos de pensamento. Minha bandeira é que o ponto de partida seja a interdisciplinaridade. Precisamos de pessoas que saibam pensar de maneira diferente, e precisamos desenvolver jovens que tenham flexibilidade e agilidade para criar novas ideias e diferentes formas de pensar. E você não faz isso só ensinando ciências, química, medicina etc. No Brasil, você prepara uma pessoa com as habilidades para uma carreira específica, e não para o mundo complexo no qual vivemos, com tipos diferentes de pensamento. Então debatemos também a necessidade de criar carreiras diferentes. Porque isso significa também que as pessoas terão mais recursos pessoais, uma vida com um conhecimento muito mais amplo.
Isso não exigiria uma mudança toda no sistema de ensino?
O sistema nos EUA é chamado de Liberal Arts, e é um programa flexível. Eu não recomendo que o Brasil copie nosso modelo, mas ele poderia ser adaptado. Um dos aspectos desse modelo é que os estudantes não precisam escolher sua carreira até o seu segundo ano. E não há muitas pessoas que acreditam que alguém com 17 ou 18 anos está pronto para saber o que quer fazer da vida. Então há uma estrutura, mas ao fim dos primeiros dois anos os estudantes têm a habilidade de articular uma ideia e dar e aceitar críticas, analisar, todas essas coisas que vêm de uma combinação de habilidades de áreas diferentes. Por isso encorajamos as pessoas a explorar diferentes áreas.
E isso surte efeito?
Mais ou menos 60% dos estudantes mudam de ideia sobre o que querem fazer. Minha afilhada entrou em um programa para ser veterinária, que era o seu sonho desde criança. No seu segundo ano, ela fez uma viagem com um professor de antropologia e foi para uma comunidade indígena. Ela passou duas semanas ali aprendendo sobre a cultura, tradição e confrontos dos indígenas com a estrutura moderna da sociedade. E ela se formou em antropologia! Quantas crianças de 5 anos sabem o que é antropologia? As pessoas chegam na universidade com pouca visão do que podem fazer. Aí são introduzidos para diversas oportunidades. Essa é a função do professor universitário: empolgar o aluno em uma paixão que ele não sabia que tinha. Uma das coisas que o Steve Jobs disse foi: “você deve encontrar o que ama, e o seu trabalho vai preencher uma grande parte da sua vida, por isso o único jeito de estar verdadeiramente satisfeito é fazer o que você acredita que é um ótimo trabalho.” Então na universidade damos aos jovens a oportunidade de encontrar o que eles amam, e isso é o que a educação deveria ser.
Muitos acabam saindo da universidade porque não conseguem encontrar o que amam lá…
Um fato interessante é que Edwin Land, Steve Jobs, Bill Gates e Mark Zuckerberg abandonaram a faculdade. Então porque esses gênios precisam sair da universidade para fazer o seu melhor trabalho? Isso é uma preocupação muito séria. Alguns dos programas que eu gosto muito são os da Universidade do Texas e da Universidade de Boston, programas de “special honors” no qual os melhores alunos do ensino médio são identificados e convidados a participar, e podem montar seu programa inteiro de estudos – com um supervisor, é claro. Os estudantes que são muito talentosos não deveriam ser barrados de forma que a universidade interfira em seu desenvolvimento. Não é um programa para todo mundo, mas é importante que a universidade abra esse espaço para que alguns possam desenvolver seu próprio caminho. Não queremos acreditar em um futuro em que os mais talentosos precisam sair da universidade para desenvolver o seu potencial.
Quais são as principais ações da Boston College em relação à promoção do ensino superior?
Somos um pequeno centro de pesquisa na Boston College e estamos em um departamento de pós-graduação em ensino superior, então a maioria dos nossos estudantes serão diretores, gestores e donos de instituições de ensino. Nós focamos em questões e tendências internacionais do ensino superior. Temos pessoas de todas as partes do mundo. No ano que vem, vamos lançar um estudo comparativo entre 28 países (Brasil está entre eles) sobre os salários e carreira dos professores universitários. Quais são os incentivos, os pré-requisitos para serem contratados, critérios para serem promovidos e terem um salário X ou Y. Isso terá muita relevância para quem faz políticas públicas, para ver quais são as condições que são mais atraentes para professores talentosos. Hoje, se você é um professor talentoso, pode ir para qualquer parte do mundo. Então existe uma questão de como manter na universidade os seus professores talentosos. Temos uma fonte de informação sobre isso, nosso site www.bc.edu/cihe, que disponibiliza um banco de dados com artigos, sites, e outras informações. Nosso Facebook e Twitter também reúne notícias sobre universidades do mundo inteiro. Queremos ser uma fonte de informação e recursos para quem trabalha com ensino superior. Depois desse estudo, lançaremos outro livro sobre a carreira acadêmica nos países dos BRICs em comparação aos EUA. O que é ser um professor universitário nesses países?
Quais são as questões que devem pautar o trabalho de um gestor do ensino superior hoje?
A ideia é conhecer o seu sistema de ensino superior e saber por que ele se desenvolveu como é hoje. Para reformar o ensino superior no Brasil hoje, é preciso saber também o que os outros sistemas de outros países estão fazendo. Também é necessário olhar de maneira bastante crítica para quais são os seus objetivos. Estamos educando pessoas para que elas não tenham um emprego? Ou apenas um emprego? Para serem cidadãos e democratas? Estamos educando as pessoas para serem cheias de recursos, para terem uma vida satisfatória, para serem felizes, para encontrar prazer em diferentes coisas? Estamos educando as pessoas para se expressarem e serem criativas? Quais são os nossos objetivos? Não acho que estamos sendo claros, estamos apenas seguindo antigos padrões.
Como você observa o ensino superior em países em desenvolvimento como o Brasil e a Argentina em comparação com países como os Estados Unidos?
A situação no Brasil é complicada porque o sistema cresceu demais e o sistema público tem um limite. Na Argentina, não há limite. Não tem vestibular, então todos que quiserem ter acesso à universidade pública, têm. É uma ideia muito interessante, mas bastante ineficiente e custosa. O Brasil tem um sistema mais eficiente, mas só pode receber um número limitado de estudantes. E o que acontece com todos que querem ingressar no ensino superior? Vão para o setor privado. Mas existe uma questão que é muito mais fácil ampliar o número de estudantes, mas não o de professores. Inevitavelmente acaba havendo um crescimento no número de matrículas que não acompanha o tempo de formação de professores, e o que acontece é uma diferença de qualidade. Sei que o governo brasileiro está preocupado com isso e a Dilma está mandando mais pessoas para o exterior, e isso é importante, mas tudo isso leva tempo.
Quais são os desafios de gestão no ensino superior que o Brasil e países em desenvolvimento enfrentam?
Um dos problemas é dinheiro, e isso não é único ao Brasil. E quem paga por isso? É muito caro. Qual é a distribuição justa entre setor privado, governo e estudantes? Existe essa fórmula muito difícil de ser equacionada. Outro desafio é a equidade ao acesso, como fazer do sistema justo. E como gerir qualidade? Todo país luta com isso, e cada um tem uma ideia do que é qualidade. Não é possível inventar uma definição de qualidade. Todo gestor quer qualidade, mas como fazer isso? Como balancear apoio à pesquisa com sala de aula? É preciso produzir pesquisa. Se você quer estar nos melhores do ranking, precisa de pesquisa. Na América Latina, isso praticamente exclui o setor privado, porque ele depende do dinheiro das mensalidades dos estudantes e isso não paga a pesquisa. Isso deixa muitas universidades com pouco prestígio e é uma grande desvantagem do setor privado. Outro desafio é como manter os estudantes no início da universidade dado que a preparação de cada um é muito diferente do outro? Quase toda universidade lida com isso. Elas devem então encontrar um jeito de desenvolver todos ou só os melhores? Nos Estados Unidos, o objetivo é que todos têm que terminar. Se alguém começa, nossa responsabilidade é fazer com que eles terminem. E para isso não precisamos diminuir nossos padrões.
Os gestores de universidades hoje são diferentes que há dez anos?
Sim e não. Muitas universidades estão fazendo experiências com gestores de empresas, seguindo o pensamento de que as universidades deveriam maximizar seu orçamento e ser eficientes. Eu não concordo com isso, porque educação não é um negócio e não é possível quantificar resultados da mesma forma que se faz com uma empresa. Então precisamos de acadêmicos com habilidades de gestão, mas devem ser professores e educadores como líderes, porque precisam apreciar o que fazemos e quais são nossas questões na educação. A educação não é sempre eficiente.