Quem anda pelas ruas imundas de São Paulo não imagina que elas são varridas até dez vezes por dia. Por que então não conseguimos limpar as cidades? A resposta está na educação da população e no investimento municipal em mais infraestrutura

Na língua inglesa, o ato de descartar o lixo em locais inapropriados virou um só verbo: littering. Não à toa, existe um extenso material em países anglófonos sobre os problemas de jogar objetos em lugares públicos. O assunto é levado a sério porque envolve questões estruturais de uma sociedade: o sistema econômico, educacional, de valores, e também a infraestrutura municipal de coleta, limpeza e varrição. Tão sério que no estado de Ohio, Estados Unidos, o littering é considerado ofensa grave e pode levar à cobrança de multa de US$ 500 ou 60 dias na prisão. Na Austrália, o flagrante também é penalizado: quem descarta pequenos objetos deve pagar US$ 60. Se o artefato for atirado de um veículo, porém, o valor sobe para US$ 200 para pessoa física e US$ 400 para empresas. A multa pode crescer ainda mais se o lixo jogado representar perigo ao meio ambiente ou à saúde pública, chegando a US$ 350 para indivíduos e US$ 750 para empresas.

No Brasil, ainda não temos um verbo específico para a ação de jogar lixo nas ruas, mas o ato prevê punição pela Lei. Teoricamente, quem for pego sujando vias públicas deve pagar multa e, dependendo da infração – em geral quando o descarte envolve mais de 50 quilos de material – pode pegar quatro anos de prisão. Isso na teoria. Na prática, em São Paulo, por exemplo, são apenas fiscais da Limpurb (Departamento de Limpeza Urbana) e, dependendo do caso, das subprefeituras, que podem autuar um cidadão pego em flagrante jogando lixo em local indevido. Os fiscais, porém, só atendem se chamados ao local da infração. Resumo: você já viu alguém ser multado por jogar lixo na rua? Provavelmente não, mas isso não impede que a sujeira continue: pesquisa de mercado da H2R realizada em 2007 com 450 entrevistados em São Paulo revelou que 76% das pessoas jogam resíduos em vias públicas, apesar de 39% considerarem que “jogar lixo nas ruas, córregos e terrenos baldios” é a atitude que mais incomoda na metrópole.

Diante de tamanha contradição, quais são reais os motivos que levam as pessoas a cometer esse ato? As respostas, ainda que baseadas em estudos, não passam de especulações, já que o problema do lixo público (como é chamado no Brasil o littering) tem suas principais bases no comportamento da população – e talvez por isso seja uma questão tão complexa de equacionar. Pesquisa feita pelo jornal tcheco Prague Post, parte da campanha Stone Circle para combater o littering revela que muitos dos objetos jogados na rua não são considerados lixo por quem joga, a exemplo de restos orgânicos ou bitucas de cigarro. Assim, a pessoa não tem a impressão de estar sujando. Outros motivos explorados pela pesquisa são, por um lado, a preguiça, a ação deliberada e o hábito; por outro, a insuficiência de lixeiras, sua localização e seu design.

Para Elizabeth Grimberg, diretora executiva do Instituto Pólis e coordenadora da área de ambiente urbano na ONG, é complicado culpar a população pelo lixo público quando há questões mais estruturais por trás de sua atitude. “Não podemos jogar a responsabilidade para o cidadão sem observar o que é feito pelo governo, especialmente municipal, para induzir a mudança de comportamento”, analisa. Segundo a especialista, jogar ou não resíduos em lugares públicos é uma questão de educação, de receber uma orientação para o que fazer, como fazer e quais são as consequências dos seus atos. “A consciência não acontece espontaneamente. Sendo assim, o lixo público é uma atitude natural das pessoas que não foram alertadas sobre a questão. Mas não dá para ignorar o fato de também depender da instalação de mais lixeiras no Brasil. Há uma carência generalizada de educação e infraestrutura no País”, problematiza.

INFRAESTRUTURA, UMA CONTA QUE SAI CARA

Se a carência estrutural é uma das causas do lixo público, não significa que os governos locais não invistam na limpeza da cidade. No município do Rio de Janeiro, por exemplo, a Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) gasta cerca de R$ 51 milhões todo mês com o serviço de coleta, transporte, limpeza de logradouros, destinação e processamento. Desse montante, somente a limpeza das vias soma R$ 23,5 milhões mensalmente, o equivalente a 46% do custo total. Isso porque a despesa com o lixo público é de R$ 200 por tonelada, enquanto o valor dos resíduos domiciliares é R$ 62 a cada mil quilos. Além disso, muito do que se joga na rua tem valor no mercado de reciclados e acaba sendo levado para aterros comuns. No estado norte-americano da Geórgia, por exemplo, são gastos US$ 90 milhões anualmente para coletar das ruas e descartar 2,6 milhões de toneladas de latas, garrafas e jornais que, se fossem reciclados, teriam o valor estimado de US$ 300 milhões.

No Rio, o lixo varrido das ruas soma mais do que o coletado das 100 mil lixeiras, 500 depósitos para pilhas e baterias e 165 mil contêineres espalhados pela cidade. Da infraestrutura instalada, são retiradas cerca de 43 mil toneladas de resíduos ao mês. A cada dia, porém, são varridas e coletadas 3,6 mil toneladas de lixo público (dado de 2007), sendo que em 1998 o número era de aproximadamente 2,4 mil, caracterizando um aumento de 33% em apenas dez anos. Em um mês, soma-se 108 mil toneladas de lixo das ruas e lixeiras, ou seja, 65 mil apenas do chão. “As áreas mais agredidas pelos resíduos sólidos são, exatamente, aquelas de maior circulação de pessoas, ou seja, o centro da cidade, terminais rodoviários e onde há maior concentração de comércio formal ou informal”, explica um porta-voz da Comlurb.

Apesar de São Paulo ser maior e mais populosa em comparação à capital fluminense, seus números de limpeza urbana são bem menores. Enquanto o Rio tem 13,2 mil garis varrendo as ruas, a capital paulista conta com 3,5 mil. Lugares como as avenidas Paulista e São João, por exemplo, são varridos de oito a dez vezes diariamente, mas em vez de 100 mil lixeiras como no Rio, São Paulo conta com apenas 5 mil. A prefeitura pretende aumentar o número, mas alega que boa parte do orçamento para a iniciativa é gasto na reposição das lixeiras depredadas. “Existe muita depredação do patrimônio público. Por ano gastamos R$ 5 milhões só para fazer a manutenção da cidade, o que envolve trocar lixeiras, placas, refazer pinturas”, afirma Lacir Baldusco, chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras de São Paulo. Segundo ele, existe uma fiscalização das lixeiras a cada 30 ou 40 dias, ocasião em que 35% delas são trocadas. “Se fizéssemos uma conscientização da população e ela nos ajudasse, poderíamos destinar parte desses recursos usados na reposição para ampliar o número de lixeiras”, justifica. “Faltam lixeiras, mas caso conseguíssemos manter as existentes, poderíamos aumentar 35% do total a cada mês.” Mas, de acordo com Baldusco, a prefeitura não tem programas educativos para conscientizar os cidadãos. Elizabeth, do Instituto Pólis, alerta: “Só colocar lixeira sem programa educativo não adianta”.

REEDUCAÇÃO É ESSENCIAL

Uma campanha de conscientização para reduzir o lixo público teria, necessariamente, que se focar nas consequências do littering. A principal delas é um dos problemas que voltou a bater à porta dos paulistanos em períodos de chuvas: as enchentes. Parece óbvio relembrar que tudo o que jogamos na rua é carregado pela água para os bueiros, causando entupimento, alagamento, bloqueio do trânsito e propagação de doenças como a lep tos pi ro se. A relação de causa e consequência é mais simples do que parece, mas a atitude que leva ao littering é mais complexa. “Uma pessoa que joga um papel de bala na rua, entra no metrô e abre outra bala para chupar, em geral não vai jogar no chão da estação. A atitude está condicionada ao modo como aquele ambiente a influencia. Se o cidadão está em um local mais limpo, com aspecto bem cuidado, com policiamento, ele muda de comportamento. Mas na rua não encontramos lixeiras, a atitude das pessoas e a atuação do poder púbico são diferentes”, analisa Sabetai Calderoni, presidente do Instituto Brasil Am bien te. Para o especialista em resíduos sólidos, a melhor campanha é varrição frequente, para que a população assista à limpeza e reflita sobre o assunto. Limpeza gera limpeza, sujeira gera sujeira.

Na opinião da arquiteta Nina Orlow, participante da Rede Agenda 21 de São Paulo e do Grupo de Trabalho de Meio Ambiente do Movimento Nossa São Paulo, são necessárias medidas mais drásticas. “O desconhecimento sobre o tema é grande porque não temos campanhas de esclarecimento em larga escala. Campanhas aqui e ali acontecem, mas precisamos de uma estruturação integrada”, argumenta. “O melhor fiscal é o cidadão. Mas para isso ele precisa de informações, precisa saber o custo da limpeza e o impacto que o lixo público gera.”

Elizabeth sugere o investimento em ações de grande escala, mas com foco local. “Poderíamos criar oficinas de bairro em clubes e associações locais para expor conceitos socio ambientais e formar uma sociedade mais sensível para a questão dos resíduos”, propõe. “Temos que fazer com que os cidadãos não tenham outra opção senão dar um fim adequado ao lixo. Quando todo mundo participa, mudam se os valores. Todos se juntam e passam para a vida privada algo que começa no público.” Dessa forma, não apenas as pessoas jogariam o lixo no local adequado, como aprenderiam também a realizar a compostagem de orgânicos, reutilizar e reciclar embalagens e não desperdiçar alimentos.

O QUE CAUSA O LIXO JOGADO NAS RUAS?

  • Inundações, que se revertem na propagação de doenças, aumento dos engarrafamentos e desabrigam a população
  • Pode matar diretamente várias espécies da vida aquática por sufocamento ou impacto naqualidade e no nível de oxigênio da água
  • Custo alto de limpeza e manutenção de infraestrutura, um dinheiro que poderia ser revertido para a população de outras formas
  • Pode causar incêndios (no caso de cigarros acesos, por exemplo)
  • Atrai bactérias e vermes e dissemina doenças
  • Apresenta risco à saúde pública se em forma de vidro quebrado ou seringas utilizadas, por exemplo
  • Imagem negativa do local sujo
  • Atrai mais sujeira e mais lixo, pois quem joga acredita que um resíduo a mais não fará diferença
  • Pode machucar ou matar mamíferos e pássaros, que confundem o detrito com comida e se sufocam ou ficam presos

CARREGUE SUA BITUCA

A bituca de cigarro é aquele tipo de lixo que o fumante acha que não é lixo. Assim, mesmo nos países considerados os mais limpos do mundo, é difícil não encontrar nas sarjetas e nos trilhos de trem os pequenos filtros amassados. O governo australiano, por exemplo, estima que 32 bilhões de bitucas sejam descartadas indevidamente por ano no país, representando 50% do lixo público. Mas não é porque as onipresentes pontas de cigarro demoram de 10 a 20 anos para se decomporem que precisam ficar sob nossas vistas poluindo as ruas, praias e rios. Já viraram moda na Europa e no extremo oriente os cinzeiros portáteis, pequenos compartimentos nos quais o fumante pode não apenas apagar seu cigarro, mas armazenar a bituca sem deixar o cheiro de fumaça escapar. Até a própria fabricante de isqueiros Zippo já lançou sua linha. O produto já existe no Brasil, mas ainda é raridade. Quem se interessar pode encomendar em sites de compra estrangeiros como o Amazon.com.

Confira o depoimento de quatro jovens estrangeiros e suas percepções sobre como o ato de descartar resíduos indevidamente em lugares públicos é visto e tratado em seus países O LIXO NOS QUATRO CANTOS DO GLOBO

“Na Alemanha, ninguém joga lixo na rua. Os alemães foram educados dessa forma e, além disso, somos conscientes de que não queremos viver em um mundo cheio de lixo porque sabemos que vamos ter que pagar por isso. Nós praticamente não temos esses funcionários para limpar as ruas porque não precisamos. Eu prefiro manter o lixo comigo ou no meu carro e descartá-lo depois, por exemplo, ainda que existam muitas lixeiras espalhadas pelas cidades. Se alguém jogasse alguma coisa na rua, a reação dos outros seria: ‘Cara, o que você está fazendo?’. Eu não diria nada, mas certamente pegaria o lixo e o jogaria no lugar certo. É uma questão de respeito! Apesar de ser uma questão cultural, existem iniciativas que o governo pode fazer. Na Alemanha, por exemplo, a cada garrafa de vidro ou de plástico que você entrega ao governo, recebe algo entre 0,10 e 0,25, e isso evita que as pessoas joguem na rua ou no lixo comum. A população precisa receber mais informações por meio de campanhas de sensibilização. Onde eu moro, fazemos uma competição entre as casas, promovida pelo governo, para ver quem produz a menor quantidade de lixo. É claro que, se uma pessoa que não aprende que não podemos jogar lixo na rua e, além disso, seus pais jogam também, fica mais difícil aprender. Mas é sempre possível mudar.”

Sofie, alemã, tem 24 anos e mora em Munique. Viajante inveterada, é matemática e snowboarder profissional

 

“Sinto que a classe média e os ricos nunca são pessoalmente responsáveis pela limpeza, por isso jogam mais lixo nas ruas. Na Índia, as pessoas pobres são as primeiras a guardar e recolher os resíduos, porque aproveitam para revendê-los para a reciclagem. Na Europa, há lixeiras espalhadas por todo canto, você não tem oportunidade de jogar qualquer coisa na rua, não pode agir às cegas. Se o fizer, alguém vai olhar feio. Na Índia, precisamos de mais lixeiras para que as pessoas compreendam: ‘Com licença, o lugar do lixo é lá’. Em um país como o meu, ninguém fiscaliza. Temos montes de lixo na rua, mas a maioria vem das pessoas nos ônibus e nos automóveis, que atiram pela janela. Precisamos nos disciplinar antes de culpar outras pessoas. A lógica é: se você não joga lixo em torno da sua casa, por que fazê-lo na rua? Mas isso não faz sentido na Índia. É muito triste. A solução é instalar mais lixeiras e estimular mais consciência. Poderia até ter uma multa, mas há um monte de outros fatores associados a uma multa. Quem vai controlar, por exemplo? Na Índia, há muita gente, não dá para controlar.”

Sanjam Chawla, indiana, 23 anos, trabalha como agente de viagens na Índia e se impressionou com os contrastes culturais ao viajar para a Europa pela primeira vez no início de 2009

 

“O lixo nas ruas é um problema no meu país, porque as pessoas não têm consciência de que não podemos jogar aquilo que não queremos mais em qualquer lugar. Acho que elas fazem isso porque existem funcionários pagos para limpar as ruas, por isso pensam que têm o direito de sujar, contaminando até mesmo o lugar onde moram. Jogam uma lata de refrigerante na rua, mas para eles é apenas uma latinha, então pode. Não fazem a ligação entre o ato e sua consequência, e pensam que um indivíduo só não faz diferença no mundo. Para mim, a solução deve ser cobrar multas, porque essa é a única medida que as pessoas respeitam. Se você jogar alguma coisa na rua, tem que ser cobrado por isso. Em Roma, por exemplo, há uma grande quantidade de fiscais que controlam os ônibus coletivos e trens. Se você não tiver o bilhete, paga algo como 300. Então as pessoas respeitam. Mesmo que o governo fizesse uma campanha contra o lixo nas ruas, as pessoas simplesmente não se importariam. Elas precisam ser cobradas.”

Luis Leon, venezuelano, tem 25 anos, é engenheiro e, depois de morar durante três anos na Itália, demorou a se readaptar em seu país por conta de questões como o excesso de lixo nas ruas

 

“Onde eu moro, não vejo grande quantidade de lixo. Pode até estar lá, mas eu não diria que é uma questão que prevalece. Acho que a principal causa do lixo nas ruas é uma combinação de preguiça, ignorância e apatia. Eu sei que soa muito duro, mas em primeiro lugar, as pessoas são muito preguiçosas para esperar até encontrar uma lixeira. Um segundo ponto é que elas não estão cientes, muitas vezes, dos efeitos prejudiciais dos resíduos em vários animais e no meio ambiente. Por último, imagino que há pessoas que simplesmente não sabem cuidar da sua cidade, o que é realmente triste. Mas eu acho que a educação desempenha um papel importante. Por exemplo, lembro-me de aprender na escola primária por quais razões não devíamos jogar lixo na rua. Eu gostaria de imaginar que há uma ligação entre a população, seu habitat e os recursos naturais, bem como a quantidade de lixo produzida. Onde eu vivo, acho que existe uma combinação de dois fatores: uma parte é a educação, outra é um apego ao lugar onde vivemos e, portanto, uma motivação para preservá-lo.”

Emily Blackmer, 19 anos, norte-americana e moradora do pequeno estado de New Hampshire, ingressou na Universidade de Dartmouth e resolveu tirar um ano sabático em vez de começar os estudos, morando na China e na França durante esse tempo