Para o pesquisador Paulo Barreto, do Imazon, a ilegalidade de terrenos e atividades ainda é o principal obstáculo para o desenvolvimento sustentável da região amazônica

É MAIS BARATO OCUPAR TERRAS PÚBLICAS E DESMATÁ-LAS do que investir na produtividade das áreas de agropecuária já existentes. Mas quanto essa escolha custa para o meio ambiente e para a população amazônica? Quem responde à questão é o engenheiro florestal Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) e mestre em ciências florestais pela Universidade de Yale (EUA). Em entrevista à Sustenta!, Barreto argumenta que a regularização fundiária é urgente em plagas onde há pouca presença do Estado e vence quem tiver mais balas no canhão. Para o pesquisador, as terras públicas ocupadas precisam ser cobradas pelo governo, e não doadas, para que seus “proprietários” valorizem o pedaço de chão e o tornem mais produtivo, evitando o desmatamento como solução de baixo custo financeiro para a expansão da cultura agropecuária. Barreto fala como representante de um instituto dedicado à pesquisa para a promoção do desenvolvimento sustentável da Amazônia por meio de políticas públicas, divulgação de informação e formação profissional. Hoje, junto ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a organização realiza, por satélite, o monitoramento mais aprofundado e completo da Amazônia. Pelas imagens de alta definição, é possível identificar áreas de desmatamento ilegal, de incêndio florestal e outras atividades clandestinas. Um grande passo para a preservação da floresta, não fosse, como explica Barreto, pela dificuldade de processamento das multas. “Uma operação de campo conta apenas com 22 procuradores do Ibama para toda a Amazônia”, lamenta. Confira nas próximas páginas a análise feita sobre os avanços e percalços do desenvolvimento da região, que fazem da Amazônia uma terra de conflitos e complexidades.

Existem hoje projetos sérios que aliam desenvolvimento social e econômico promovendo a preservação do meio ambiente e o benefício das comunidades?

Existem alguns, especialmente ligados a madeireiras certificadas, com o selo do FSC [sigla em inglês para Conselho de Manejo Florestal]. Infelizmente, poderíamos ter mais iniciativas do gênero se não tivéssemos obstáculos tão grandes como a questão fundiária. Até mesmo as empresas certificadas tiveram problemas por não terem terras regularizadas. Isso é um problema em toda a Amazônia.

Qual é a dimensão desse problema?

Há vários aspectos. Na área florestal, a certificação obedece a vários critérios, e por isso não pode ser realizada se não tiver a regularização fundiária. Na agropecuária, existem áreas bastante desmatadas e com baixa produtividade. O problema hoje é ser mais barato aumentar a produção ampliando a área de plantio ou criação do que melhorando a produtividade da terra.

Como então criar uma agropecuária mais sustentável?

Isso depende de trabalhar essa questão das áreas desmatadas. Muitos defendem que precisamos dar subsídios em forma de dinheiro aos pecuaristas para que eles invistam na produtividade desses terrenos. Mas verifica-se que, mesmo quando os proprietários têm dinheiro, continuam ocupando as terras públicas. Ao fazer a conta, ele vai calcular os custos de melhorar a produtividade, com adubo, pasto, replantio, melhora da distribuição e do manejo, estrutura de cerca, e comparar ao custo de desmatar, que é bem mais barato. O que devemos fazer é uma regularização fundiária para eles terem que pagar pela terra que ocupam, e então viabilizamos a produtividade na área desmatada.

Um dos argumentos de quem desmata a Amazônia é que essa é a única forma de desenvolver a região e o País. O desenvolvimento é inviável paralelamente às questões socioambientais?

Já existe uma área desmatada na Amazônia que é maior do que a França. É um território expressivo. Não precisamos de mais terra para essa produção agropecuária, a questão é usar melhor a área que já está desmatada. O maior argumento contra esse tipo de defesa é o da eficiência. O Presidente Lula, o ministro da agricultura e a Embrapa mostram que já podemos continuar a produção com a área aberta que temos. Então a pergunta é: por que continuamos a desmatar? A resposta está ligada diretamente à questão fundiária, porque sai mais barato abrir novas áreas.

Quais são as dificuldades para a implementação desse tipo de projeto fundiário na Amazônia?

Bom, existem várias. Há uma disputa sobre qual é o modelo, já que a ocupação da Amazônia foi forte e livre. Como cada um pegava a maior área possível, o resultado disso é que muitas áreas têm concentração de terra nas mãos de poucas pessoas. Do outro lado, existem os pequenos proprietários que querem uma parte dessa terra. Aí o governo chega e diz que isso é injusto, que devemos regularizar a situação. Entra então outro ponto que pode se tornar um problema: quem é pequeno produtor foi para a região amazônica na época da ocupação de fato sofreu porque foi pioneiro, e coloca-se que o governo deveria de fato cobrar pouco ou mesmo doar a terra ocupada.

Como resolver esse impasse?

Tem que se cobrar um preço justo pela terra. Já ouvi de São Félix do Xingu a Brasília essa história da doação de terras. Mesmo que o governo esteja disposto, qual é o preço justo para essa terra? É um tema delicado, porque as pessoas se apropriaram dela livremente. É uma questão cultural para ela: como querem cobrar de mim o que era antes de graça? É também uma questão econômica, porque quem não paga pela terra tem mais recursos para investir no transporte dos produtos para a cidade mais próxima, que é geralmente longe do terreno onde estão. Se o produtor tivesse comprado a área desde o princípio, adquiriria algo mais perto de seu mercado. Vai ter gente que de fato está localizada em uma região que, se precisar pagar pela terra, seu negócio se tornará inviável economicamente, e terá que desistir. Hoje, a medida provisória da regularização fundiária é bem perigosa, porque diz que até 100 hectares a terra é doada, de 100 a 400 hectares haverá um desconto e até 1500 hectares o produtor tem 15 anos para pagar e três anos até a primeira prestação. Mas veja só: a pessoa nunca pagou para estar lá, isso tudo é mais uma carga de subsídios que a estimula a prolongar uma situação ilegal e cria uma abertura para novas ocupações. Esse é o problema da ocupação desordenada.

Só a legislação pode garantir o desenvolvimento sustentável da Amazônia?

O Brasil já tem muitas regras ambientais. No caso da Amazônia, um ponto específico que falta é um ajuste no desenvolvimento econômico ecológico. Antes, o Código Florestal dizia que era preciso manter 50% de área florestal do terreno, e agora é 80%. Aí tinha gente que já estava estabelecido e tinha só 50% de mata, então teria que recuperar 30%. Ficou a discussão se ficaria 50% ou 80% para quem já estava instalado e tinha potencial agrícola. Para ter essa flexibilidade, precisamos do zoneamento econômico, que é uma lei, afinal, essencial para implementação do Código Florestal. Até agora, só o Acre e Rondônia têm.

E se os outros estados tivessem a lei, a situação seria diferente?

A tradição é que mesmo havendo o Código ele não seja respeitado. O Brasil é um país complicado em relação ao cumprimento das leis. A lei “pega” ou não, e o Código Florestal não pegou. Nos últimos anos existe uma tentativa do Brasil de deixar mais claro o respeito pela Lei, mas ainda temos uma cultura resistente. Além disso, há também a cultura do fato consumado. Existe uma lei, ela não é cumprida, e aí fazem uma nova lei adaptada a quem não quer obedecer, que faz uma anistia de quem não cumpriu a determinação. Por isso, cria-se uma expectativa, na Amazônia e no Brasil, de continuar não respeitando as leis porque depois a pressão pode adaptar essas determinações. A questão fundiária é um bom exemplo, porque as pessoas ocuparam terras públicas, ainda que isso seja ilegal desde 1850. A regularização posterior é ilegal, mas sempre abre brecha.

Se é ilegal, porque não monitoramos e fiscalizamos?

Na era do desmatamento, as tecnologias de monitoramento já são bastante avançadas. As imagens de satélite são boas e as técnicas de processamento, também. É possível detectar fogo e áreas de madeireiras ilegais, por exemplo. Podemos observar qualquer área da Amazônia. Mas a grande dificuldade é o que vem depois que os órgãos governamentais multam os infratores. O que acontece com essas multas? Menos de 2% ou 3% do valor é arrecadado.  A fiscalização é a identificação inicial de que houve uma infração ou não, a fase seguinte é o cumprimento da pena e a responsabilização, tanto na esfera administrativa quanto judicial. É aí que está o problema.

Por que esse sistema de punição é tão frágil?

São vários problemas. Um deles é que o governo investiu muito na fase de monitoramento, mas não na de cobrança. Então, existem muitos crimes ambientais, mas pouca gente para processar esses casos. Organizam-se grandes operações, gasta-se muito, os fiscais voltam do campo com um monte de multas, mas isso fica estocado com o processamento muito lento. Uma operação de campo conta com apenas 22 procuradores do Ibama para toda a Amazônia. O segundo ponto é que esse processamento de multas tem sido pouco estratégico, no sentido em que existem muitas multas, mas as mais importantes deveriam ser cobradas primeiro porque 20% dos casos correspondem a 80% do valor total das multas. Além disso, o valor da contravenção tem a ver com a quantidade de danos ambientais. Quem causa mais impacto deveria ser multado primeiro. A União criou recentemente grupos de trabalho para focar nos maiores casos. Daqui a algum tempo, talvez, vejamos resultados.

O governo está dando conta dessas demandas por políticas públicas na região amazônica?

A situação do governo é um pouco contraditória. De um lado, ele tem dificuldade de entender o que se quer da Amazônia. Quais são as políticas integradas coerentes? O governo sempre faz medidas que se contradizem umas às outras, quando seu papel seria o de coordenar. Em vez disso, tende a uma pressão aqui e ali, fica confuso.

Por que não conseguimos diminuir o desmatamento?

Além da questão fundiária e da dificuldade na aplicação das multas, que colaboram para o desmatamento, existe também o problema do crédito. O governo faz alguns tipos de investimento que atrai pessoas para áreas de floresta. Por exemplo, a criação de assentamentos na Amazônia por meio de crédito. O desmatamento cresce quatro vezes mais nesse tipo de área do que fora. O agravante é que o próprio Incra deveria fazer e não tem feito a licença ambiental antes de criar os assentamentos. Com essa atitude, ele desmoraliza a legislação, porque as pessoas veem que o próprio governo não cumpre a Lei.

A violência hoje na Amazônia está diretamente relacionada ao desmatamento?

O desmatamento em si não é intrínseco à violência. O que acontece é que há violência associada à disputa pela terra. São dois tipos: um faz parte da questão da terra ser pública. O governo não toma conta dessa área e as pessoas percebem isso e a ocupam. Em uma fronteira onde o Estado não está presente, não há justiça, não há polícia, quem tem mais chumbo, leva a terra. Então, para demonstrar o uso desse lugar, a pessoa desmata. Tem também uma outra violência associada à disputa pela terra. No começo, muitas pessoas pegaram terras grandes e ficaram lá por muitos anos. Tivemos um aumento de investimento, chegaram os empreendimentos, atraiu imigração para lá. Por exemplo, uma hidrelétrica, um garimpo de ouro. As pessoas vão atrás. Quando acaba esse investimento, muita gente fica sem emprego e percebe que tem diversas terras grandes na região que, apesar de serem geralmente produtivas, não são legais. Aí começa o movimento de invasão desses territórios para disputar e forçar o governo a fazer a Reforma Agrária.

Existe alguma questão fundamental da Amazônia que não se discute atualmente na mídia?

A questão do sistema fundiário tem aparecido, mas sinto falta de um tratamento aprofundado da complexidade do tema. A imprensa em geral e o próprio leitor veem a Amazônia como preto no branco. O problema fundiário envolve uma complexidade muito grande, mas, ao entrar de fato na questão, as pessoas se cansam porque acham enrolado demais. Isso gera o problema de ter a oportunidade de falar do assunto apenas durante uma crise, como quando morre uma liderança ou muda-se uma lei importante. Além disso, muitas vezes os jornalistas que vêm à Amazônia escrevem sobre a região de maneira muito parcial, por que veem um aspecto muito limitado, de forma a não conseguir dar a dimensão do problema retratado.

Qual é o papel das empresas nesse cenário?

Por um lado, elas podem garantir uma cadeia de produção livre de ilegalidade, com a recusa de comprar madeira de origem não certificada, ou de bois criados em área de desmatamento. Uma das barreiras hoje na Amazônia é que há muita coisa ilegal, especialmente madeira e terras, e isso espanta o investidor sério. Ele não vai colocar dinheiro na região se não souber de onde vêm esses produtos. A ilegalidade no campo dificulta o desenvolvimento industrial, por isso resolver a questão fundiária e florestal atrairia mais investimentos e agregaria mais valor aos produtos e empregos. Há pouco tempo eu assisti a uma apresentação de um engenheiro florestal que gostaria de investir em reflorestamento na Amazônia. Veio, tentou, e não conseguiu por causa da falta de títulos das terras. Decidiu então investir na China e na Indonésia. Tem muita empresa querendo investir na Amazônia, mas não consegue.

A resolução dos problemas da Amazônia, na sua opinião, depende apenas do Brasil? 

É difícil dizer. O Brasil poderia fazer muito mais do que tem feito, e uma ajuda internacional em alguns aspectos seria bem-vinda. Especialmente no que envolve as mudanças climáticas, que é um problema de ordem global. Alguns países, que tiveram maior responsabilidade nessa crise, poderiam investir em ações na Amazônia. Mas nós já somos um país de renda média, não podemos ficar esperando e dependendo de ajuda internacional para resolver nossos problemas.