Creches públicas de ONG indiana ensinam conceitos como vegetarianismo, ioga e sustentabilidade a crianças da periferia de São Paulo
Periferia da capital paulista. As largas avenidas se transformam em ruas, que ficam cada vez mais estreitas e tortuosas até formar vielas de favelas. Entre os barracos e casas modestas, avista-se o colorido sobrado com a placa da prefeitura que identifica uma pequena creche. O CEI (Centro de Educação Infantil) Universo Infantil, localizado no Jardim Guarani, na zona norte, é uma das cinco instituições mantidas pela ONG Internacional Ananda Marga Universal Relief Team (Amurt-Amurtel) na cidade. À primeira vista, parece uma escola de educação infantil tradicional, com trabalhos de crianças espalhados pelas paredes, mobília em miniatura, brinquedos e livros. Mas alguns detalhes aqui e ali fazem o visitante perceber que há algo diferente. Como a plaquinha de madeira entalhada onde se lê a expressão hindi “Namaskar” (a divindade em mim reconhece a divindade que há em você, em tradução livre) encontrada em diversas salas da creche sustentável. Em funcionamento desde o início de 2011, o CEI possui um sistema de aproveitamento de água da chuva (que gera, em média, uma economia de 6 mil litros por mês), aquecedor de água solar, horta e jardim vertical e piso de borracha feito de pneus reciclados. A pintura do prédio, que foi reformado com materiais de demolição, é com tinta à base de terra e atóxica (que saiu 90% mais barata do que a convencional). A reforma privilegiou a iluminação e a ventilação natural e os forros da cozinha e do refeitório receberam isolamento térmico feito com embalagens Tetra Pak.
Mas as diferenças vão além do espaço físico. Ali, as crianças são educadas segundo uma filosofia propagada pela Ananda Marga no mundo inteiro: o neo-humanismo. Criada e difundida pelo filósofo indiano P. R. Sarkar, essa pedagogia busca envolver paralelamente o físico e o espiritual das crianças. E isso não tem nada a ver com religião. “Desenvolvemos a criatividade por meio de uma educação holística”, afirma a economista filipina Didi Jaya, em um português com forte sotaque, coordenadora das creches em São Paulo (elas também estão presentes em outros estados, como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro). Isso significa, na prática, trabalhar com a interdisciplinaridade: escolhe-se um tema e, a partir dele, exploram-se diversos aspectos. Em julho, por exemplo, os alunos estudaram a preservação do meio ambiente. As atividades envolveram teatro, uma experiência científica com gelo para compreender os estados físicos da água, uma oficina para fazer brinquedo com lixo reciclado, entre outras. As crianças ainda trouxeram de casa a sua fruta preferida para estudar as sementes e seus nutrientes. “Mas o mais importante é saber ouvir o que elas têm a dizer”, acredita Didi, que é voluntária da ONG no Brasil há 15 anos e ajudou a levantar, tijolo por tijolo, cada uma das creches.
Na capital paulista, a Ananda Marga “ouve” 500 crianças de 0 a 4 anos de comunidades pobres – a fila de espera chega a dobrar o número de vagas existentes. Como as creches são conveniadas, elas recebem parte dos recursos necessários da prefeitura. Em troca, têm a liberdade de contratar quem quiser e de escolher o projeto pedagógico, desde que siga o cronograma do município. As professoras são pagas e registradas, mas 70% do trabalho é voluntário.
Além da filosofia neo-humanista, a Ananda Marga aplica outros métodos vindos da Índia. O primeira é a shantala, um tipo de massagem para bebês, que tem a função de tranquilizá-los por meio do contato pele a pele. Nas creches da ONG em São Paulo, elas são realizadas pelas professoras uma vez por semana. Já as crianças maiores, a partir dos 3 anos, participam de aulas de ioga semanais, onde aprendem as famosas posturas que imitam animais, a meditar e a controlar a respiração. O princípio dessas duas artes é flexibilizar e acalmar o corpo e, por consequência, a mente.
Outro princípio difundido pela ONG no Brasil é a alimentação vegetariana. As cinco refeições servidas diariamente nas creches não contêm carne, nem ovos (que também são considerados uma forma de vida). O cardápio, que é planejado por uma nutricionista e aprovado pela prefeitura, inclui iogurte natural feito na creche (cuja receita é muito requisitada pelos pais), carne de soja, tortas, arroz e feijão, entre outros vegetais. Tudo temperado com ervas que os próprios alunos plantam. A prefeitura oferece uma parte dos alimentos, que é comum a todas as creches conveniadas, e a ONG complementa com cereais, bolachas integrais, sucos, frutas e mais delícias. Didi faz questão de cuidar de perto da alimentação dos pequenos. Além de fazer a polenta que é servida às segundas-feiras, ela vai pessoalmente às feiras de rua da região na hora em que estão terminando para conseguir frutas e verduras mais baratas ou doadas.
As crianças aprovam: dos bebês aos maiores, todas raspam o prato. A dona de casa Cássia Helena Pinheiro, mãe de Breno, 3 anos, teve receio em relação ao cardápio sem carne no começo. “Mas ele está muito saudável e é isso o que importa”, diz.
O vegetarianismo e a filosofia neo-humanista, obviamente, causam estranhamento nas comunidades. Por isso, desde a matrícula, as diretoras das unidades deixam claro que não professam dogmas religiosos. E embora a maioria dos pais e professores das creches seja evangélica, todos ficam à vontade ali. Ana Paula da Silva, mãe da aluna Samiry, 3 anos, é uma delas. A princípio, também estranhou a comida e a didática, mas hoje está segura ao observar a desenvoltura da filha. “A Samiry tem muito mas facilidade para aprender as coisas hoje”, comenta. “Isso é importante para nós, pois queremos que as famílias sintam que somos a segunda casa das crianças”, afirma Didi. E ela já está craque em aprender as regras da comunidade. Certa vez, equipamentos foram roubados do local e a coordenadora procurou o líder do tráfico da favela. Em pouco tempo, encontraram os culpados e os objetos foram devolvidos. “É preciso ir com cuidado, senão você assina seu certificado de morte”, diz. Mesmo a aproximação com as famílias é feita aos poucos, para criar confiança. “Só depois que abraçamos os pais é que podemos dar bronca.”
O abraço é forte, porque as creches se tornam uma referência onde se instalam. Didi dribla a falta de oportunidades dos alunos fazendo saídas pedagógicas, mas para isso depende de doações e parcerias. No Dia das Crianças do ano passado, por exemplo, conseguiu uma doação de 2 mil brinquedos para as comunidades. Além disso, um dos aliados ofertou passeios e móveis para os refeitórios. Outro amigo da coordenadora fecha, uma vez por ano, uma sala de cinema para as crianças. O carro usado por eles também é doado.
E para angariar o que falta ao orçamento, a ONG ainda promove cursos (ioga, shantala, etc.) e eventos beneficentes, como jantares vegetarianos. Toda a equipe, das faxineiras às gestoras, é convidada a participar. Para Didi, falta de dinheiro não é desculpa para uma educação sem qualidade. “Nosso maior esforço é fazer as crianças sonharem. Só assim elas vão se esforçar para sair da difícil realidade em que se encontram hoje”, acredita.