Diretora-presidente da ONG Ateliê de Ideias
Quando Leonora chegou para trabalhar com um grupo de mulheres do morro de São Benedito, em Vitória-ES, dificilmente imaginaria como aquelas pessoas – que nem sequer haviam descido do morro e pisado na areia da praia – cresceriam tanto com sua ajuda, a ponto de formar uma associação produtiva, criar um banco comunitário com moeda local, uma incubadora de projetos e um programa habitacional. Essas são apenas as principais vertentes da ONG Ateliê de Ideias, que surgiu a partir de um projeto de customização de roupas doadas pelo Instituto C&A para 60 mulheres, em agosto de 2002. “Elas tinham uma situação de vida muito difícil naquela comunidade, em meio ao tráfico de drogas, à violência doméstica, à falta de alternativas de trabalho e renda, ao desemprego. Eram analfabetas e não tinham qualquer capacitação ou formação para outra área de trabalho”, descreve Leonora. “Elas não conheciam nem cores. Pela primeira vez na minha vida conheci pessoas que não sabiam o que era ‘amarelo’. Elas começaram a contar que isso era porque a vida delas era em preto-e-branco.”
O começo foi difícil para as mulheres, que não tinham qualificação, noção de negócios ou recursos financeiros para comprar matéria-prima. Leonora, contratada como psicóloga social para articular o grupo, extrapolou suas funções e passou a orientar e liderar as costureiras do Ateliê. O desafio inicial assumido por ela foi conseguir dinheiro para adquirir o material necessário e produzir peças que seriam expostas e vendidas em uma feira. Essa foi a primeira vez – de muitas – que Leonora foi ao banco tentar um empréstimo para o projeto, e a primeira de muitas recusas. A mesma cena tornou-se déjà vu mais tarde a cada vez que Leonora tentava dar um passo além com os grupos produtivos do Ateliê, que foram se multiplicando ao longo dos anos. E a recusa constante de crédito, enfim, teve frutos positivos: a criação do banco comunitário.
Mas esse horizonte, que a comunidade alcançou em 2005 com a ajuda de Leonora, ainda estava longe da realidade do grupo de costureiras convidado pela primeira vez a vender suas peças, em dezembro de 2002. Nessa data, com o empréstimo bancário recusado, Leonora conseguiu a verba necessária – 300 reais – com a igreja local. Depois de vender todas as peças, as mulheres multiplicaram o dinheiro para 800 reais. “Depois de pagar o empréstimo, ficamos com 500 reais. Aí era um sofrimento, porque eram 60 mulheres que queriam cear um peru de natal pela primeira vez, e o dinheiro não dava. E como eu ia mostrar para elas que aquele monte de nota de dez não era um dinheirão? E como dividir?”, relembra a psicóloga. A solução, enfim, foi guardar 300 reais em uma poupança e, com 200, recomeçar a produção.
Foi o princípio de um ciclo de economia solidária que nunca mais deixaria o morro de São Benedito. Isso porque com os 300 reais poupados, as costureiras do Ateliê ajudaram um outro grupo de mulheres da comunidade a comprar os materiais necessários para começar a produzir panetones, depois que elas, lideradas por Leonora, também tiveram crédito negado no banco. O mesmo aconteceu com a turma de adolescentes que entrou pouco tempo depois no Ateliê de Ideias querendo construir uma oficina de marcenaria, e que teve o dinheiro para começar graças às costureiras, que continuavam revertendo parte da arrecadação com a venda das roupas para a poupança. Depois, o Ateliê de Ideias abrigou e apoiou ainda um grupo interessado em produzir sabão caseiro a partir de óleo reciclado, além de outros produtos de limpeza. “Isso foi criando no morro a possibilidade de mostrar que nem todo mundo era bandido. As pessoas foram vendo que era possível fazer algo diferente” , orgulha-se Leonora. “Todos esses grupos novos do Ateliê começaram graças ao empréstimo das mulheres da parte de moda, e todos eles venderam nos primeiros meses mais do que elas vendiam em um ano.”
Todas essas atividades eram feitas não apenas informalmente, mas em locais emprestados da igreja e do Secri (Serviço de Engajamento Comunitário). Isso passou a ser um problema quando o Ateliê de ideias começou a crescer, os produtos foram encomendados em maior escala por empresas e o projeto precisava de mais espaço para trabalhar. A esta altura, Leonora já havia perdido o emprego com o fim do patrocínio do projeto (um ano depois do início) e dava continuidade ao trabalho de maneira voluntária.
Para vender para as empresas, no entanto, os grupos de moda, marcenaria, culinária e produtos de limpeza precisavam emitir nota fiscal, ou seja, abrir uma empresa e ter um CNPJ. Leonora, então, foi à Receita Federal pedir a abertura da empresa. “O ‘não’ eu já tinha, só precisava correr atrás do ‘sim’”, afirma o que parece ser seu mantra. Em 2004, três meses depois de entrar com o pedido para conseguir o cadastro na Receita, a psicóloga recebeu o ‘não’ como resposta. “‘O governo falando que a gente precisa gerar trabalho e renda, a gente está tentando trabalhar e vocês não deixam?’, eu falei para eles. Aí deitei num banco da Receita e falei: ‘Só saio daqui com a perspectiva da nota fiscal’. Falei que se me tirassem de lá eu chamava a imprensa. Então, pela primeira vez, um chefe me atendeu e me escutou”, relata. Depois de alguns dias, Leonora conseguiu que o Ateliê de Ideias pudesse emitir notas. Porém, como associação, ele não poderia distribuir resultados, ou seja, renda. “Precisávamos então de uma alternativa de crédito.”
Foi então que a Prefeitura de Vitória chamou João Joaquim Neto, criador e coordenador do Banco Palmas, banco comunitário cearense pioneiro no Brasil, para ministrar uma palestra. Na plateia estavam Leonora e mais três mulheres do Ateliê. Foi então que tiveram a ideia que não só resolveria o problema de crédito do projeto, como ajudaria no desenvolvimento de toda a população do morro de São Benedito: criar um banco comunitário. Com o auxílio de Joaquim, em outubro de 2005 Leonora e os artesãos do Ateliê fundaram o Banco Bem – “Bem” de Benedito e também do “bem que geraria para a comunidade”, conforme uma das mulheres profetizou logo no início.
A profecia se concretizou, cravando um marco na história das famílias do morro capixaba. O banco nasceu com 9 mil reais disponíveis para empréstimo, recebidos da venda de um terreno que pertencia à igreja e foi doado à associação. Para comprar a casa que seria a sede do Banco Bem, o Ateliê usou 10 mil reais de doação recebidos de uma empresa da construção civil e 15 mil emprestados da igreja.
Com recursos da Associação de Educação Católica, Leonora pôde contratar uma agente de crédito, estagiária moradora do morro. Sua função seria visitar os candidatos a empréstimo, avaliar o caso e acompanhá-lo pessoalmente até o pagamento da dívida.
Junto com o Banco Bem, nasceu a moeda Bem, com lastro em real (para cada Bem existe um real guardado no banco) e validade apenas na comunidade, com o objetivo de aquecer a economia local. “A grande ideia é fazer com que pessoas que produzem e consomem numa área urbana não comprem apenas no supermercado da cidade. Se colocamos uma rolha e não permitimos que o dinheiro da comunidade saia, a tendência é que ela comece a circular sua riqueza e passe a crescer e se desenvolver”, esclarece Leonora.
Pegar um empréstimo com o Banco Bem funciona da seguinte forma: o candidato tem duas opções de linhas de crédito, a de produtor e de consumidor. Hoje existe ainda uma terceira, o crédito habitacional, que não existia ainda há época do lançamento do banco por exigir mais dinheiro no caixa. Tanto o consumidor quanto o produtor podem receber o empréstimo em reais ou em Bens – a vantagem de pedir os Bens é receber desconto no comércio local. Além disso, todo o crédito recebido em Bem é impassível de juros, diferente do feito em reais. Desde 2007, a comunidade pode também pagar contas, receber benefícios (como o Bolsa-família) e sacar em Bens a partir de um correspondente bancário – um tipo de caixa eletrônico com a função similar a de uma casa lotérica – da Caixa Econômica Federal instalado dentro do banco.
Com tanta facilidade, é de se imaginar que Leonora e o Banco Bem perderiam o controle dos numerosos pedidos de empréstimo. O segredo para que isso não aconteça, no entanto, é colocar a própria comunidade como fiscalizadora e reguladora do processo. Exemplo: quando alguém se candidata para receber um crédito, antes de concedê-lo ou não a agente do banco questiona os vizinhos sobre o candidato. “É a confiança da comunidade que garante aquele crédito. A vizinhança diz se dá para confiar naquela pessoa. Hoje temos pergunta-chave: ‘Se o dinheiro fosse seu, você emprestaria?’ – se o sorriso for amarelo, é complicado”, ensina Leonora. Mas os critérios não são apenas a confiança dos vizinhos. No decorrer do tempo, a comunidade de São Benedito formou um fórum participativo para, em princípio, avaliar quem poderia ou não receber crédito, determinar o valor dos juros para empréstimos em reais, cobrar inadimplências. Essa é, segundo Leonora, uma maneira muito mais humana de trabalhar com crédito para a população, porque a comissão é capaz, por exemplo, de perdoar dívidas e estudar caso a caso a real necessidade e dificuldade dos candidatos a crédito.
Toda essa participação popular chamou a atenção das comunidades vizinhas a São Benedito, que quiseram também fazer parte não apenas do fórum, mas do que Leonora chama de “Território do Bem”, ou seja, da área de cobertura do Banco Bem. Hoje, esse território soma 31 mil pessoas de oito comunidades.
Com a ampliação das atividades, a atuação do Ateliê de Ideias e do Banco Bem, ambos dirigidos por Leonora, chamou a atenção da prefeitura de Vitória, que em janeiro de 2006 doou ao projeto 30 mil reais. A partir dessa contribuição, a psicóloga social pôde colocar em prática o que tinha em mente desde o começo do banco: criar uma linha de crédito habitacional. Por meio dele, a comunidade pode reformar, expandir e construir sua casa ou comércio no morro.
O consultor Gláucio Gomes, diretor-presidente Rummos Assessoria Pesquisa e Avaliação, explica que para que bancos como o Bem funcionem em benefício da comunidade, e não privado, precisam atender uma comunidade de no máximo 50 mil pessoas. “Para que os bancos comunitários continuem sendo viáveis, precisam ser capilarizados, se não entram na ética de mercado. Ficaria muito pesado ter que manter uma estrutura maior e o banco teria que começar a cobrar por isso”, afirma. O Banco Bem mantém hoje essa estrutura capilarizada e de baixo custo, o que permite beneficiar sempre mais pessoas. Até abril de 2010, já havia concedido 555 créditos, o que se traduz em cerca de 2.220 habitantes do morro favorecidos (uma média de quatro pessoas por família).
Mas o banco comunitário é hoje apenas uma parcela do Ateliê de Ideias, uma fatia chamada de Núcleo de Finanças Solidárias. A associação mantém também o Núcleo Habitacional, que se dedica ao apoio e avaliação técnica das construções beneficiadas com o crédito habitacional, e o Núcleo de Desenvolvimento Comunitário, que se incumbe de receber ideias da comunidade e colocá-las em prática, seja na área de formação de capital social, seja na criação de empreendimentos econômicos solidários.
“Quando conheci o Ateliê veio à minha cabeça o conceito das agências de desenvolvimento local, que são simplesmente a capacidade de articular e organizar recursos humanos, naturais e econômicos e criar condições para ampliação das capacidades e competências comunitárias”, explica Gomes. “Por isso o diferencial do Ateliê de Ideias é ser uma das únicas agências de desenvolvimento local em plano urbano no Brasil. Ele passa pelo grande desafio de definir o lugar de atuação – o que é difícil em cidades –, com o conceito de Território do Bem. É um espaço criativo para gerenciar e articular o saber e recursos locais e transformá-los em ativos comunitários. A associação tem como patrimônio praticamente nada, só tem um legado cultural.” O consultor e sociólogo define o Ateliê como um “pacote de serviços” para a comunidade. Isso significa que qualquer morador da área atendida chega com uma ideia de negócio à organização e é capacitado, treinado, recebe assistência técnica, crédito e assessoria, tudo para ver seu projeto sair do papel.
Para o especialista, o sucesso do Ateliê hoje se deve à liderança de Leonora. “Ela tem uma característica que vemos em muitas lideranças, mas que vai além, que é justamente o senso de coletivo: ela sabe se posicionar num grupo a ponto de liderá-lo sem se apoderar dele. Liderar poderia gerar centralização, vaidade, mas nunca vi uma pessoa descolada do poder como ela, é impressionante. Sabe puxar a rédea e ser uma figura patriarcal, embora seja também muito maternal”, elogia. Gomes observa, ainda, que Leonora tem a capacidade carismática de agregar, além de ter a visão de longo prazo tão necessária para gerir uma organização do porte do Ateliê atual. “A melhor forma de caracterizá-la é como uma tremenda diplomata.”
E como grande diplomata, o sonho de Leonora é deixar um legado de paz como resultado de seu trabalho. “Vejo que hoje as pessoas aprenderam comigo e podem tocar o Ateliê de Ideias sem que eu esteja presente em todas as situações”, afirma a psicóloga. “Meu maior sonho nessa comunidade é morrer, porque se a gente morre no processo significa que essa comunidade chegou onde queremos, pode continuar sozinha.” A afirmação é dramática, mas Leonora a faz com a leveza e o sorriso de sempre no rosto. Ela conta que seu otimismo sempre foi assim, desde o tempo em que seu sonho era ser missionária em comunidades ribeirinhas da Amazônia.
Nascida em 16 de dezembro 1960 em Belo Horizonte e filha de uma dona de casa e de um funcionário público, já havia escolhido a carreira de psicóloga desde os 13 anos. “Isso porque eu creio muito no ser humano e em toda sua capacidade de construção, mudança e transformação. Isso me intriga, me emociona e me faz pensar num outro mundo possível, com outras perspectivas. E sempre quis acompanhar esse processo de transformação de perto”, conta. O trabalho começou com igrejas de comunidades eclesiais de base, onde Leonora, ainda adolescente, podia discutir formação social e política como gostava.
Aos 15 anos, foi chamada pelo padre da igreja que frequentava para realizar um trabalho social na Favela do Buraco Quente, na capital mineira. Quando chegou no local, se deparou com um homem assassinado e mutilado estendido no córrego pelo qual as pessoas tinham que passar para subir o morro. “Aquele dia eu tive certeza que eu não ia mais parar de subir o morro. Eu sabia que aquilo era uma situação impressionante, mas que só mostrava que existiam questões sociais ali que precisavam ser trabalhadas. Não eram simples assassinatos, as pessoas não eram más”, relembra.
Depois dessa experiência, Leonora se mudou para o Rio de Janeiro – o pai havia sido transferido – e mais uma vez se ligou ao trabalho social em favelas por meio da igreja. Aos 18 anos, de volta a Belo Horizonte, ela começou a cursar a tão sonhada faculdade de psicologia, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O plano de seguir para a Amazônia, no entanto, foi abortado quando Leonora conheceu seu atual marido, com quem está desde os 21 anos. Por conta do emprego do companheiro, mais uma vez recomeçou do zero e viveu dez anos em Timótio (MG), sempre trabalhando com serviço social. Em 1995, quando se mudava de volta para Belo Horizonte, ela, o marido e o filho, hoje com 23 anos, perderam tudo o que tinham no caminhão de mudança, que pegou fogo na estrada. Desempregada e sem nada, ela recomeçou novamente e trabalhou na área social até que, em 2001, foi de novo acompanhar a transferência do marido, desta vez para Vitória. Mais uma vez ela subiu um morro e soube que nunca mais desceria – e está até hoje em São Benedito.