Militante pelos direitos dos idosos no estado de São Paulo

Quem observa o sorriso, a tranquilidade e a simpatia de Olga Quiroga não imagina que essa senhora chilena de 74 anos e cerca de um metro e meio de altura pode crescer tanto e saber ser brava quando o assunto é reivindicar o direito dos idosos menos privilegiados, especialmente em relação à moradia. Quando passeia em meio aos beneficiados por sua militância, não faltam abraços e olhares de admiração. Dona Olga não hesita em parar o que está fazendo para conversar com os senhores e senhoras. Conhece todas as histórias, as dificuldades, as conquistas, e guarda para cada um algumas palavras de encorajamento.

Onde existe reivindicação de direitos do idoso em São Paulo, Olga está por trás. A incansável chilena, há 50 anos no Brasil, participa ativamente e intensamente de tantos movimentos, eventos e manifestações sobre o tema que pode passar por onipresente. É vice-presidente do Grande Conselho Municipal do Idoso, secretária-executiva da União dos Movimentos de Moradia, coordenadora geral do Grupo de articulação para moradia do idoso da capital (Garmic), membro da Associação Nacional de Gerontologia (ANG), do Conselho Municipal do Idoso de São Paulo, do Conselho Regional de Saúde da Coordenadoria Sé/Centro Oeste e da Pastoral da Moradia da Região Ipiranga. Participa, ainda, das reuniões da Comissão Permanente do Idoso da Câmara dos Vereadores de São Paulo, pressionando com a agenda dos idosos menos favorecidos da capital. Em 2007, recebeu da Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Presidência da República, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos como reconhecimento por todo esse trabalho. No topo de tudo isso, Dona Olga ainda encontra tempo para dedicar ao marido, quatro filhos, nove netos e três bisnetos. “A Olga tem casa, tem marido, tem família, e poderia ficar em casa acomodada, mas faz um serviço social que ninguém quer fazer”, afirma Seu Getúlio, braço direito da militante no Garmic.

Esse serviço consiste basicamente em reinserir idosos na sociedade por meio da cidadania e política. Mas por que o foco na terceira idade e na habitação? “Os idosos fazem parte de um dos segmentos mais vulneráveis da sociedade e são os mais abandonados. Existe muita violência contra eles, até mesmo dentro da família, e muitos vão parar na rua ou em lugares precários. Mas, na verdade, não precisam de dinheiro. Se você der tempo e oportunidade, eles aproveitam”, explica Olga. “É só chegar e conversar.”

A militante se revolta com a condescendência das autoridades políticas quando o assunto é a terceira idade. “Somos indivíduos pensantes, andamos, caminhamos, cantamos, pulamos, fazendo tudo o que os outros fazem, mas com certa dificuldade. Mas fazemos! Então por que tirar nosso protagonismo? Estão chamando a gente de burro?”, critica. Por isso, seu principal trabalho é oferecer aos idosos instrumentos e informações para que possam conhecer e defender seus direitos junto ao governo. Apesar da base de seu trabalho ser a politização, Dona Olga é apartidária. “Meu partido é o idoso, eu trabalho para o idoso”, frisa. “Minha parte eu faço, depois eles que têm que defender os próprios direitos.”

Esse é o principal mote do Garmic, o coletivo coordenado por Olga que já chegou a atender 2 mil idosos (hoje são cerca de 400) em busca de moradia. O movimento começou oficialmente em 1999 a partir de 17 idosos moradores de rua que dividiam uma casa de passagem, mas queriam uma residência fixa. O líder, Sr. Expedito, convidou Olga à época para falar semanalmente sobre habitação popular. “As pessoas primeiro tinham que saber quais eram seus direitos. Depois disso, todo movimento nasce da necessidade social, no caso a de moradia”, descreve.

Hoje, o Garmic, principal ocupação de Olga, está instalado em uma pequena sala em um prédio no Largo São Francisco, centro de São Paulo, e fica aberto de segunda a sexta das 9h30 às 16h30. A entidade atende pessoas com mais de 60 anos, com renda em geral de um salário mínimo, em busca de melhores condições para morar. Os membros, que chegam por meio da indicação de outras pessoas, de órgãos públicos ou de ONGs, são moradores de rua, de albergues, cortiços, favelas ou de locais alugados que não podem mais pagar. “O objetivo é preparar o cidadão para ir para a sua habitação”, define.

O Garmic funciona como centro de informação, articulação, assessoria e reivindicação para idosos. Dona Olga e os outros 12 voluntários do grupo organizam os membros para participarem de reuniões mensais do próprio coletivo sobre direitos e cidadania, além de se mobilizarem para pressionar o governo. “Nós vemos tudo o que está sendo discutido em relação ao idoso, como reuniões na Câmara, e divulgamos no Garmic para os membros participarem”, diz a chilena.

O grupo se mantém graças à colaboração de cinco reais mensais dos idosos inscritos, uma taxa opcional que varia de acordo com o quanto cada um pode contribuir. Olga conta que dispensa os parceiros políticos, que frequentemente tentam fazer da entidade um “curral eleitoral”. Mas o Garmic conta com alguns parceiros institucionais (nenhum financeiro), como a Defensoria Pública de São Paulo, que colabora com assessoria legal.

O principal trabalho do grupo, no entanto, é a conversa e conscientização. Dona Olga conta, por exemplo, que orienta e convence diversos idosos para dormirem em albergues em vez de ficar nas ruas. “Eles não gostam de ir para os albergues porque são maltratados, mas os programas de habitação social dão prioridade para quem está no albergue, e eu explico isso.” O coletivo organiza também passeios culturais, como ao Teatro Municipal, e ajuda quem precisa de assistência médica. Mas essas são extensões do objetivo central da organização.

Segundo Olga, o primeiro passo quando alguém se inscreve no Garmic deve ser conhecer o Estatuto do Idoso. “Aí mostramos que ele tem direito, que o que o médico está fazendo não é favor, nem a assistente social. É direito dele. Então o idoso vai crescendo, crescendo, e quando precisa, ele fala”, explica. Seu Getúlio complementa: “A maior parte das pessoas daqui não tiveram escolaridade, então não conhecem seus direitos, não são politizados e isso torna tudo muito mais difícil.”

Olga também passa boa parte de seu tempo procurando terrenos ou locais abandonados que possam servir de espaço para um projeto de habitação social: ela afirma que 1400 prédios de São Paulo hoje estão desabitados e poderiam ser utilizados, mas que o governo não tem dinheiro para reformar esses edifícios.

Por todos esses obstáculos para conseguir emplacar projetos de habitação popular, a lista de espera de idosos por moradias não é curta. Mas a própria existência de um lugar como o Garmic une e fortalece os membros do grupo, que muitas vezes conseguem sua casa apenas usufruindo das informações e articulação do coletivo. É o caso de Teti Ferrari, aposentada e membro do Garmic que esperava por sua casa há 30 anos. “Eu tinha uma inscrição na Cohab, fui sorteada e não quiseram me entregar o apartamento. Depois disso, não soube mais onde ir para resolver o assunto”, conta. “Mas vindo ao Garmic, comecei a ouvir uma história aqui, um conselho ali, e em janeiro finalmente fui à Defensoria Pública reclamar. No dia 19 de abril me ofereceram um apartamento.” Apesar disso, Teti continua fazendo parte do movimento e admira muito o trabalho de Olga. “Ela é uma fuinha. Cava debaixo da terra e segue em frente, por mais difícil que seja o caminho, ela desvia de todas as pedras.”

Tanta batalha já gerou uma grande conquista ao Garmic em 2007. Seu primeiro projeto, a Vila dos Idosos do Pari, foi inaugurado com 145 apartamentos e abriga hoje 196 idosos, todos membros do grupo de Olga. A militante pediu o terreno abandonado para a construção do conjunto habitacional anos antes e apresentou ao governo o projeto de orçamento participativo da Vila, que foi aprovado, mas só saiu do papel em 2004 com o financiamento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). O processo para chegar ao resultado final não foi simples, e na briga do dia a dia Olga estava sempre presente, pessoalmente fiscalizando a obra e o cumprimento do projeto, que visita quase que diariamente para conversar com os idosos e monitorar o funcionamento, hoje sob administração da Cohab.

Quem também participou da briga e conseguiu seu apartamento na Vila dos Idosos foi Neide Duque, militante do Garmic desde 2001. A ex-atriz e bailarina, que fez parte do Teatro Ruth Escobar, representou o Balé Bolshoi em São Paulo e viajou o mundo todo, perdeu tudo o que tinha e finalmente teve que abrir mão do apartamento onde morava pagando um aluguel muito baixo para sua renda. Neide conta que nunca foi engajada em movimentos sociais, mas hoje é uma das principais vozes do Garmic junto a Olga e atua como conselheira no Conselho Municipal do Idoso. “O idoso está hoje à margem da sociedade, e a luta da Dona Olga é resgatar esse respeito. Não interessa a classe social, a raça, o que fez ou deixou de fazer. O que interessa é que o idoso é um ser humano que trabalhou e tem uma história de vida que precisa ser respeitada”, observa.

Como moradora da Vila dos Idosos, Neide paga, como todos os outros, a locação social à Cohab, correspondente a 10% da renda mensal de cada um. Além disso, a comunidade paga um condomínio de cerca de 50 reais todo mês, além de telefone e energia elétrica. A aposentada explica que a Vila funciona hoje como um condomínio normal, mas administrado pelo governo. Além dos apartamentos, os idosos contam com uma horta, oficinas de artesanato, tricô, um bazar para venderem seus produtos, uma comissão de eventos (que promove festas como a junina, o Carnaval e noites de cinema). O principal serviço, este oferecido pelo governo, é a comissão de saúde, que disponibiliza acompanhantes para os idosos (seja para ir ao supermercado ou no caso de uma emergência hospitalar) e orienta com primeiros socorros.

Com um histórico bem diferente de Neide, Jacira Justina é outra idosa abrigada pela Vila dos Idosos. Antes de conseguir seu apartamento no projeto, a aposentada viveu nas ruas de São Paulo durante anos, se refugiando em albergues à noite depois que perdeu seu emprego de empregada doméstica, com o qual podia contar para se abrigar nas casas das patroas. Hoje, a integrante do Garmic comemora o fato de ter seu lugar para morar e mostra, feliz, os trabalhos manuais que fez nas oficinas de artesanato e o caderno da escola, para onde voltou e está cursando o primeiro ano do ensino médio. “Estou orgulhosa de você”, diz Olga, observando o caderno bem organizado e o sorriso no rosto de Jacira. “A Dona Olga é uma pessoa maravilhosa. Eu guardo jornal, fotos dela, ela é minha mãe. Sempre me orientou, me deu puxão de orelha, e agora está tudo em paz”, agradece Jacira.

Acompanhar a rotina dos aposentados é algo que ocupa bastante tempo de Olga, mas é sua grande paixão. Ela passa nas ruas conversando com idosos desabrigados, lava suas roupas, os leva a albergues. “Chego e falo ‘o que você está fazendo aí? Tomou banho hoje?’”, conta. Cheia de energia, Dona Olga compartilha da realidade daqueles de quem ajuda, apesar de garantir que nunca passou por dificuldades. Todo o trabalho que faz é voluntário, e ela se mantém com um salário mínimo seu e outro do marido. Ela corre, animada, de um canto a outro da capital paulista o dia todo a pé ou de transporte público. Não falta disposição: há apenas sete anos (2003), terminou de construir, com suas próprias mãos, sua casa, também uma habitação popular, por meio de mutirão.

Nascida em 19 de agosto de 1936 em Los Andes, cidadezinha 84 quilômetros ao norte de Santiago, capital chilena, Olga completou o magistério e, sob o forte controle do pai, militar aposentado, decidiu fugir de casa com o namorado (hoje marido). “A gente tinha todo o conforto, mas não tinha liberdade. E nunca gostei de ser mandada, eu prefiro fazer as coisas por mim mesma do que me mandem fazer.” A primeira parada foi a Argentina, já que Olga acreditava que para qualquer lugar que fosse no Chile, o pai a encontraria. Como o país não foi muito receptivo com os imigrantes, o casal seguiu para o Uruguai e depois para o Brasil, de onde nunca mais saíram.

Olga é militante do movimento de moradia desde 1987 e garante que boa parte dos obstáculos para conseguir mais habitação popular vem do fato que ela é constantemente combatida pelos órgãos públicos e sempre tromba com muros da burocracia estatal. “Eu tenho uma bagagem de muitos anos sobre o assunto. Eles não gostam de alguém que não só entende do assunto, mas que responde e questiona”, argumenta. Ela nunca imaginaria, no entanto, que estaria tão envolvida com uma militância quando chegou ao Brasil em 3 de outubro de 1960. Trabalhou como costureira e o marido como técnico de eletrônica, até que a família foi acometida por um grave problema de saúde da filha mais velha. A primeira neta de Olga, ainda bebê, estava em fase de amamentação e precisava de leite, que a chilena não podia comprar. “Eu acordava às quatro horas da manhã todos os dias para pedir leite mas padarias, até que me falaram que a Pastoral da Moradia doava leite”, relembra. “Então comecei a me envolver e a me solidarizar com os problemas dos outros. Vi que o meu problema não era tão grande assim.”