A qualidade de vida dos moradores das grandes cidades – e a própria sustentabi­lidade das metrópoles – está ameaçada pela falta de mobilidade. Qual é a saída?

Aparcela da população mundial que vive em cidades atingiu este ano 3.3 bilhões de pessoas e superou, pela primeira vez na história, aquela que habita o meio rural. As metrópoles mundiais com um número de habitantes igual ou superior a 10 milhões são o lar de 300 milhões de pessoas, de acordo com estimativa das Nações Unidas. Destas, mais de 210 milhões vivem nas grandes cidades dos chamados países em desenvolvimento, como o Brasil. A maior metrópole brasileira, São Paulo, abriga pouco mais de 19 milhões de moradores. A segunda, Rio de Janeiro, quase 12 milhões de pessoas.

Aqualidade de vida da população destes centros urbanos – e por tabela a própria sustentabilidade das metrópoles – está ameaçada por um novo desafio: a falta de mobilidade. Como é possível ser feliz numa cidade na qual se perde uma hora dentro do carro, parado no trânsito, a cada dia? Ou, sendo usuário de ônibus, de duas a três horas estagnado, sem ar condicionado, música, e muitas vezes em pé, espremido como sardinha em lata? Esses números dizem respeito a São Paulo, o maior exemplo no Brasil de falta de planejamento urbano, mas a baixa fluidez no trânsito está presente em muitas outras cidades do País e do mundo, prejudicando a economia, a saúde e o meio ambiente em que vivemos. Qual a saída?

As reações à paralisia urbana apontam para várias direções. Inspirados em cidades como Paris e Barcelona, que integraram bicicletas ao sistema público de transporte, os amantes das magrelas passaram a reivindicar mais condições e seguran­ça para circular pelas ruas. Ocicloativismo é hoje o principal movimento organizado por um novo padrão de mobilidade nas grandes cidades. “Apercepção do automóvel como meio de transporte insustentável está maior. Ao mesmo tempo, muitas pessoas estão dispostas a exercer sua cidadania e lutar por uma cidade mais humana”, afirma Thiago Benicchio, 29 anos, que participa todos os meses de uma bicicletada na Avenida Pau­lista, centro financeiro e cartão-postal de São Paulo. Thiago relata em seu blog “apocalipse motorizado” que trinta e duas cidades brasileiras foram palco de manifestações durante o Dia Mundial Sem Carro, em 22 de setembro. Em Curitiba, por exemplo, ciclistas pedalaram nus pelas ruas da cidade, à noite, para chamar a atenção à fragilidade das bicicletas no embate diário com carros, ônibus e caminhões.

Conforto é fundamental

Apressão vem dando resultados. Em setembro, a prefeitura de São Paulo inaugurou seis quilômetros de ciclovia asfalta­da na zona leste da cidade (outros 19 quilômetros devem ser implantados ainda este ano) e três bicicletários foram insta­lados em estações de metrô. Osecretário de Meio Ambiente da cidade, Eduardo Jorge, ele próprio um ciclista tardio, conta que quando assumiu a secretaria municipal encontrou forte resistência no setor de transportes para que a bicicleta fosse vista como alternativa. “Oconsenso entre os engenheiros de tráfego era o de que em São Paulo não dava. Falavam até que a topografia da cidade era empecilho, como se as bicicletas não tivessem marchas”.

Eduardo Jorge acredita que o uso da bicicleta pode contribuir muito para a sustentabilidade das cidades, pois reduz o tráfego e não emite gases de efeito estufa, mas também afirma que o caos do transporte nas grandes cidades não será resolvido apenas com a adoção em massa das bicicletas. Oprogramador Afonso Savaglia, 35 anos, participa das bicicletadas mensais na Avenida Paulista portando um cartaz com a frase “Vendo créditos de carbono”, mas não espera que a maioria dos moradores siga o mesmo caminho. “Eu entendo quem não abandona o carro, faltam condições e estímulos para encarar a cidade de outro jeito”.

Em uma pesquisa do Ibope sobre qualidade de vida na metrópole, encomendada pelo Movimento Nossa São Paulo, 46% dos entrevistados afirmaram que passariam a usar o ônibus quase todos os dias caso houvesse mais conforto no sistema. “Isso significa mais pistas exclusivas, embarques rápidos e com maior freqüência”, explica o urbanista Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba e uma das maiores referências no Brasil em transporte e planejamento urbano. Opreço da tarifa, a demora e o desconforto dos ônibus e vagões de metrô e trens metropolitanos precisariam ser superados para atrair mais usuários, principalmente aqueles que possuem carro, como a química Stella Gonçalves, que prefere ficar dentro do seu carro, parada no congestionamento do fim do dia no centro da ci­dade, a optar por um meio de transporte coletivo. “Eu atravesso distâncias enormes diariamente, não dá para andar de ônibus”.

Embarque inteligente

Aopção pelo transporte público é ainda mais remota para quem tem algum tipo de deficiência física, algo como 14% da população. “Um cadeirante dentro de um ônibus lotado fica levando cotovelada dos outros. Eacontece o mesmo com idosos, gestantes e obesos”, conta a vereadora pau­listana Mara Gabrilli, que é tetraplégica. “Omaior problema para o deficiente é a cidade privilegiar o automóvel em relação ao pedestre. Precisamos melhorar as calçadas das cidades, especialmente nas rotas mais estratégicas, onde os serviços estão concentrados, em sinergia com o embarque e desembarque do transporte público”. Atualmente, dos cerca de 15 mil ônibus da capital, apenas três mil são adaptados para pessoas com mobilidade reduzida.

Jaime Lerner reformou o sistema de transportes da capital paranaense ao longo de três man­datos. Mudou o modelo de crescimento da cidade, trocando grandes obras viárias por calçadões, reestruturou os eixos viários e redefiniu o zoneamento da cidade, com os prédios mais altos sendo construídos nas vias mais bem atendidas pelo transporte público. Curitiba, que tem a maior pro­porção de carro por habitante do País, conta com um sistema de ônibus organizado em corredores e pistas exclusivas. Lá, o usuário paga a passagem na estação, que fica na mesma altura do veículo, facilitando o embarque.

Circulam diariamente em São Paulo quase quatro milhões de pessoas por dia nos 61 quilômetros de linhas de metrô e nos 314 quilômetros de trens metropolitanos. Onúmero de passageiros dos ônibus é três vezes maior. “Acidade precisa priorizar o transporte de superfície, responsável por 80% dos deslocamentos”, afirma Lerner. Para ele, São Paulo e ou­tras grandes cidades de mobilidade colapsada nunca terão uma rede de metrô completa, com estações perto uma das outras, aos moldes de Paris e Nova Iorque. “OMetrô não é solução para tudo, se investir só nisso São Paulo vai continuar errando. Hoje acompanho projetos em 83 cidades do mundo que avançam em transporte de superfície”. Algumas pesquisas apontam para um futuro no qual os moradores das cidades terão ônibus guiados automaticamente, com sensores definindo velocidade e distância e ocupando melhor os espaços.

Um novo desenho urbano

Calcula-se que, se 30% dos motoristas deixassem o carro em casa e optassem pelo transporte público, a velocidade média de locomoção na cidade aumentaria em 50%. Ocaminho para isso, porém, é longo. Uma pesquisa divulgada pelo Metrô neste mês revela que o transporte público lentamente ganha novos usuários em São Paulo. Em 2007 foram realizadas 13,8 milhões de viagens diárias em meios coletivos, o que re­presenta 55% do total. Em 2002, a participação do transporte coletivo no total das viagens estava em 47%. Para o urbanista Cândido Malta Filho, professor da Universidade de São Paulo, a reconquista da mobilidade na metrópole passa por rever o zoneamento da cidade para concentrar os prédios junto das linhas de metrô e dos corredores de ônibus, redesenhar ruas e calçadas para priorizar os pedestres, ampliar a malha metroviária e implantar o polêmico pedágio urbano, a partir de 2015.

De acordo com a pesquisa do Movimento Nossa São Paulo, 52% dos paulistanos usariam mais o metrô caso houvesse mais linhas próximas ao trabalho e às residências. “Os recursos para ampliá-lo viriam do pedágio urbano, que traria assim um duplo benefício, tirando carros da rua e gerando dinheiro para o metrô”, explica Malta Filho. A conta é simples: cobrando menos de dois reais por dia dos quatro milhões de carros que circulam no centro expandido da cidade, o pedágio arrecadaria cerca de 1.6 bilhão de reais por ano. “Como o preço médio de uma linha de metrô subterrânea é de 200 milhões de reais por quilômetro, em dois anos se faz uma linha de 16 quilômetros”.

Opedágio urbano foi implantado com sucesso em várias cida­des do mundo, como Londres e Estocolmo (veja quadro na página 30). Atualmente a única restrição ao automóvel em São Paulo – que recebe 600 novos carros por dia e cuja frota total supera as seis milhões de unidades – é o rodízio semanal. AAssociação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), não está entre os defensores da ampliação do rodízio ou criação do pedágio urba­no. Por meio de um comunicado, a associação afirma que o setor está envolvido nas discussões sobre mobilidade urbana no Brasil e que considera como papel central do setor “oferecer ao mercado automóveis compactos, com atenção especial para motores com combustíveis econômicos”. Jaime Lerner também não acredita que culpar o automóvel em si represente solução para o caos atual. “Carro é que nem sogra. Tem que manter boas relações, mas nunca ser controlado por ele”.

Mobilidade na sociodiversidade

No que diz respeito ao controle dos automóveis e respeito ao pedestre, quem tem algo a ensinar é Brasília. Acapital federal é reconhecida por ter estabelecido, ao longo de anos, um padrão de educação no trânsito no qual a faixa de pedestres é respeitada. Amudança de cultura, de acordo com o senador Cristovam Buarque, que coordenou o projeto quando governador do Distrito Federal, baseou-se em repressão com educação. “Quando eu assumi, as vítimas de acidentes lotavam os hospitais . Quando eu saí, havia até leitos sobrando”, vangloria-se Buarque. “Areceita para essa mudança contou com fortes multas para quem infringisse o limite de velocidade e uma campanha de educação.”

Para recuperar as ruas de São Paulo às pessoas, muitos urbanistas defendem um novo zoneamento e plano urbanístico. “O espaço público se perdeu, mas é possível retomar esse tipo de uso se reduzirmos o vo­lume de veículos nas ruas”, sustenta Malta Filho. Para Paulo Saldívia, especialista da Faculdade de Medicina da USP em saúde e trânsito, a diminuição dos carros acarretaria em importantes benefícios à saúde pública. “Com os congestionamentos, as ruas das grandes cida­des são como uma grande chaminé linear”, afirma. “Hoje, um indivíduo que perde duas horas num congestionamento fumou um cigarro. Não é muito para a maioria das pessoas, mas para o bebê, a grávida, a pessoa mais frágil, isso faz diferença”.

Mas será que é possível resolver apenas com mais bicicleta, metrô e ônibus as necessidades cada vez maiores de locomoção da nossa sociedade? Muitos especialistas acreditam que não. Afirmam que parte da solução é reduzir a demanda pelo trans­porte, reorganizando as cidades para que as pessoas possam viver e trabalhar nos mesmos bairros ou regiões. “Os bairros centrais, que estão equipados com rede de transporte, estão perdendo população há muitos anos”, diz Renato Cymbalista, urbanista da Escola da Cidade. Para ele, o problema da mo­bilidade, ainda que mais evidente em São Paulo, já é sentido no cotidiano de outras grandes cidades do País, como Recife, Manaus e Rio de Janeiro “Também nestes locais a expansão das periferias avança sobre áreas de preservação ambiental, ao mesmo tempo em que boa parte da infra-estrutura central das cidades fica ociosa”. Para o demógrafo canadense George Martini, do Fundo de População das Nações Unidas, o colapso das grandes metrópoles mundiais pode sim ser revertido, desde que as políticas públicas de habitação e transporte passem a atender também à maioria mais pobre da população. Ou, como diz Jaime Lerner, permitam que a sociodiversidade de funções, rendas e idades nas ruas e bairros abram alas para que a mobilidade urbana, enfim, dê sinal verde para a sus­tentabilidade das metrópoles.

Um mundo de soluções

Cidades do mundo se planejam ou adotam soluções inovadoras para que pessoas – e não carros – fluam por suas artérias

Muitas grandes cidades do mundo enfrentam e vêm apresentando soluções efetivas para problemas semelhantes aos nossos. Um exemplo é Londres, que desde 2003, cobra oito libras para os carros que entram no centro da cidade. A chamada “taxa de congestionamento” fez com que 75 mil veículos deixassem de entrar diariamente no centro da cidade, com aumento nas viagens de ônibus (foto acima, à esquerda), bicicletas e metrô, cuja malha tem 408 quilômetros de extensão e, nos horários de pico, opera no limite. O pedágio gerou uma receita de 644 milhões para a prefeitura londrina, que pretende investir em mais ônibus. O pedágio também foi implantado em Estocolmo na Suécia, em 2006, reduzindo em 22% o fluxo de carros nas áreas centrais. Ouso de carros em Nova York também é coisa rara. O alto custo de manter e estacionar um carro na cidade e a extensão da rede de metrô – com mais de mil quilômetros (foto à esquerda) – fazem com que 95% das pessoas circulem na cidade via transporte público. Modelos e sistemas de ônibus inspirados em Curitiba foram escolhidos pelas prefeituras da Cidade do México e Bogotá, na Colômbia. Na capital mexicana, com 20 milhões de moradores, antigos micro-ônibus foram substituídos por um sistema de transporte de ônibus expressos que cortam avenidas centrais, reduzindo o tempo das viagens de duas para uma hora. Na capital da Colômbia o novo sistema de ônibus atende 1.2 milhão de passageiros por dia. De cada cinco passageiros, um tem carro mas prefere o ônibus pois é mais rápido. Bogotá ainda conta com mais de 300 quilômetros de ciclovias integrados ao sistema de transporte público.

Carro é caro

“Eu costumo usar muito ônibus, metrô e táxi e, nos finais de semana, o carro, que é dos meus pais. Onormal é usar o metrô e ônibus, mas quando estou com pressa e tenho algum compromisso, uso o táxi. Arelação custo-benefício vale a pena. Eu calculei os gastos envolvi­dos para manter o carro, como seguro, imposto, estacionamento e combustível, e cheguei à conclusão de que é mais barato continuar andando com o transporte público e o táxi. Trabalho num grande escritório de advocacia e a maioria dos meus colegas optou por comprar um carro, mas eu acho que numa cidade como São Paulo não faz sentido gastar todo o dinheiro que ganhamos para manter um. Ele tem que servir para te levar em um lugar e te trazer, e um carro mais simples serve para isso. Eu viajo bastante a trabalho e vejo que no Brasil como um todo existe essa cultura do automóvel, mas você não precisa de um carro do ano para dizer quem você é. Enquanto as pessoas derem valor ao carro como extensão delas próprias, vai ser difícil resolver a situação.” William Crestani, advogado

Grávida de moto

“Eu moro longe do meu trabalho e estava chegando muito atrasada, então decidi comprar uma moto porque é um veículo econômico. Comprei para poder agilizar o meu dia-a-dia. Em setembro eu sofri um acidente e descobri que estava grávida. Por sorte não aconteceu nada com o neném. Agora, por causa do acidente, tenho que usar ônibus ou meu namorado me busca de carro, que é o instrumento de trabalho dele. Meu acidente foi o seguinte: tenho uma moto e uso ela para trabalhar. Optei pela moto para chegar mais rápido. Eu estava no corredor entre os carros, numa velocidade bem tranqüila, um carro me fechou. Voei por cima do carro e caí no canteiro. Os motoqueiros pararam para me ajudar e o carro parou porque os motoqueiros fizeram pressão. Descobri recentemente que o motorista do carro está me processando, quer que eu pague o dano nos carros dele. Acho que São Paulo não foi planejada para ter transporte público eficiente. Oponto de ônibus você nunca acha. Precisa ter uma cultura de ter apenas um carro por família.” Denise Curcino, secretária