Em tese, empresas não podem registrar termos comuns e de uso popular como marcas. Mas e na prática?

Em janeiro deste ano, veículos de comunicação anunciaram que o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) vinha distribuindo notificações extrajudiciais a universidades e escolas que usavam os termos “olimpíada”, “olimpíadas” e “jogos olímpicos” em competições educativas. O argumento usado é que os termos estariam registrados como marca no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), e são de uso comercial exclusivo do COB.

– As cartas enviadas às instituições de ensino tinham caráter educativo, de forma a garantir que as propriedades Olímpicas não fossem usadas indevidamente; por exemplo, ligadas a atividades comerciais – esclareceu o COB via assessoria. “FALAR DO COI E DA PROTEÇAO”

O procedimento de registro de marcas é conduzido pelo INPI, autarquia do Governo Federal, e demora cerca de três anos entre o pedido e o registro – isso se não houver recursos e oposições.

Uma pesquisa no banco de dados do INPI, no entanto, mostra que o pedido de registro das palavras pelo COB foi indeferido. E não apenas pelo Comitê, que primeiro tentou registrar “Olimpíadas”, “Olympica” e “Jogos Olímpicos” em 1996, sem sucesso. Em 1984 e 1987, as empresas Olimpíadas Indústria de Artigos Esportivos Ltda. e Batávia S.A. também pediram a marca “Olimpíadas”. Mas tanto os que chegaram antes quanto as centenas de pedidos seguintes foram negados, por um motivo simples: “olimpíada” é um substantivo comum, uma palavra antiga e de uso popular da qual uma empresa não pode, ao menos no Brasil, se apoderar para explorá-la comercialmente – tampouco pode impedir os outros de usarem-na.

Mas os meandros da propriedade industrial são labirintos cheios de especificidades, exceções e obstáculos. Trocando em miúdos, as regras não são nada simples. É possível registrar qualquer nome, termo ou expressão? Não. O COB não conseguiu o registro dos nomes comuns, mas obteve as marcas COB Brasil Jogos Olímpicos, COB Brasil Olimpíada, Jogos Olímpicos Rio 2016, Olimpíada estudantil, Olimpíada escolar, entre outros, que fazem referência a eventos específicos. Assim, isso não impede que outras instituições, como o Ministério da Educação, que promove a Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro e a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep), usem o nome dos jogos criados na Antiguidade.

– O MEC não abre mão das políticas públicas de incentivo ao ensino da matemática e da língua portuguesa: a OLP e a Obmep – declarou oficialmente o Ministério.

Então quais são, afinal, os critérios para definir quem pode ou não ter o direito comercial sobre uma palavra e bani-la do dicionário de outras instituições?

ABC da marca

O advogado José Antonio Faria Correa, sócio do Dannemann, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira (escritório referência em propriedade industrial no Brasil), explica que existem diversos critérios e impedimentos para registrar uma marca no país.

– Para uma marca ser registrada a partir de uma palavra dicionarizada é preciso que não tenha conexão semântica com o produto. Eu não posso, se eu sou um distribuidor de água mineral, registrar a palavra “água”, porque é um termo necessário e de uso livre para os concorrentes – define.

O termo não pode, portanto, ter uma relação muito evidente com o produto ou serviço da empresa. Assim, uma loja de móveis não pode registrar o nome “sofá”, uma editora não pode registrar “revista” ou “livro”, uma fábrica de ferramentas está impedida de obter a marca “martelo”, e assim por diante.

– Se a palavra integra o universo semântico daquela atividade, estaria prejudicando diretamente os concorrentes ao usar um termo genérico.

Correa cita os exemplos da Apple como marca de fabricante de computadores e outros eletrônicos, e o carro Gol, da montadora Volkswagen, explicando que são nomes arbitrários em relação à atividade da empresa.

Tíquete

Existem também as marcas que possuem alguma conexão com a atividade da empresa, mas essa ligação só pode ser vista de maneira indireta, como é o caso da palavra ticket, dicionarizada no Brasil como tíquete.

No Paraná, em 2002, a justiça negou à empresa Ticket Paranaense o direito de registrar seu nome como marca exclusiva, pois a marca já pertencia às companhias Accor S/A e Ticket Serviços, Comércio e Administração Ltda. Apesar de a palavra tíquete ter sido incorporada à língua portuguesa, o uso para intermediar a aquisição de produtos (como as empresas que oferecem tíquetes para que seus funcionários almocem) não é seu sentido original – bilhete, nota, recibo etc.

Segundo Correa, essas são as marcas evocativas, ou seja, que levam à compreensão de que o produto serve determinado fim, mas não é o nome do produto. Nessa categoria se encaixam também marcas que sejam neologismos – a exemplo do canal Telecine, da empresa de energia Petrobras e do banco Bradesco.

– Bradesco é uma aglutinação de Banco Brasileiro de Descontos. Alude ao serviço, mas sem descrevê-lo. O consumidor tem uma noção relativamente clara da finalidade da marca – analisa o advogado.

Particularidades

A regra parece clara, mas os casos de registros encontrados no mercado relativizam os critérios. O advogado Fernando Perandín Evangelista, sócio da Ideiativa, consultoria em propriedade industrial, ilustra o caso da empresa de cosméticos Natura, que conseguiu o registro de uma palavra de uso corrente.

– A marca Natura, em princípio, não poderia ser registrada. A filosofia da empresa é utilizar produtos naturais, mas foi feito um grande trabalho de pesquisa e grande investimento em marketing para transformar o termo, que em princípio é comum, em algo individualizado que pode ser registrado como marca.

Outro caso singular é do martelinho de ouro, técnica utilizada para reparar a lataria de automóveis. Em 1994, uma empresa conseguiu comprovar que havia inventado o método, e registrou a marca martelinho de ouro. No entanto, nos anos que se seguiram o termo se disseminou no ramo e tornou-se comum. A empresa recorreu contra um concorrente apenas em 2011, quando a expressão já vinha sendo utilizada por inúmeras oficinas mecânicas há bastante tempo. Sendo assim, a empresa detentora da marca não pôde pedir a indenização (ainda que não tenha perdido o registro).

– O caso do martelinho de ouro foge um pouco da regra. O titular às vezes não tem o cuidado necessário para proteger a sua marca. Como diversas mecânicas começaram a usar e ele não tomou nenhuma medida, o termo ficou desgastado, ficou conhecido como uma técnica para consertar o automóvel – explica Evangelista.

Açaí japonês

Os casos da Natura e do martelinho de ouro exemplificam termos comuns que conseguiram ser registrados como marca, mas as exceções não param por aí. Em 2003, a empresa japonesa K.K. Eyela Corporation conseguiu em seu país o registro da palavra Açaí. No Brasil, explica Evangelista, a companhia não poderia ter adquirido esta marca, pois o critério básico é que não seja descritivo genérico do produto que identifica.

– Mas o organismo de registro de marcas do Japão não conhecia a fruta brasileira e concedeu o registro.

O Açaí só voltou a ser brasileiro em 2007, quando o Japan Patent Office entendeu o equívoco e cancelou a patente. Caso a marca continuasse a pertencer à empresa japonesa, instituições brasileiras seriam passíveis de processo judicial ao utilizar um termo tão genérico quanto água em seus produtos ou serviços.

Por isso o registro de marcas deve ser um processo cuidadoso e que leve em consideração registros do mundo inteiro, não apenas do país onde é feito o requerimento. Caso isso não fosse observado, por exemplo, a palavra Nike, termo genérico da língua grega, não poderia ter sido registrado como marca pela empresa fabricante de tênis e artigos esportivos.

A Copa do Mundo não é nossa

Talvez o mais célebre caso de registros de marcas internacionalmente é o da Fifa. Na última Copa do Mundo, realizada na África do Sul em 2010, foi noticiada a batalha judicial que a organização travou com a companhia aérea Kulula, após a empresa ter publicado uma tabela de voos para as cidades-sede dos jogos junto ao ano 2010, que havia sido registrado como marca da Fifa. Entendendo que isso fazia referencia à Copa do Mundo, a Fifa processou a empresa. Em resposta, a Kulula lançou uma nova campanha para ironizar o ocorrido, com a frase: “nem no próximo ano, nem no ano passado, mas entre esses dois anos”.

À época, o diretor de marketing da Kulula, Nadine Damen, se pronunciou sobre o assunto em reportagem à imprensa internacional: “Não podemos fazer qualquer referência à Copa do Mundo. Eles também nos disseram que não podemos usar a vuvuzela que, para nós, representa o povo sul-africano e seu amor pelo futebol.”

A Fifa se destacou ao longo dos anos não apenas pela rigidez ao impedir que qualquer empresa faça menção à instituição ou a algum de seus eventos (sem que pague royalties) quanto na quantidade de pedidos de registro de marca. Apenas no Brasil, eles somam cerca de 1200 no INPI.

Os últimos registros da organização no país foram Brasil 2014, Copa 2014 e Brasil 2013, além de todos os nomes das cidades-sede acrescidos do ano 2014 (exemplo: São Paulo 2014).

– A Copa do Mundo é um evento que eles organizam e, por isso, querem proteger os seus símbolos. Mas há certos exageros, como querer registrar o ano de 2014 – afirma Evangelista.

Destaca-se, no entanto, o registro adquirido pela Fifa da palavra “pagode”. Este é o nome da fonte usada nas campanhas e símbolos da próxima Copa. Por isso, o INPI concedeu o registro protegendo apenas a tipografia. Assim, se alguma casa de shows fizer uma peça publicitária anunciando um show de pagode, não será passível de multa. Caso a palavra tivesse sido registrada na sua totalidade – o que inclusive desobedeceria a regra básica do registro –, para Oscar Vilhena, diretor da Faculdade de Direito FGV-SP e professor de Direito Constitucional na mesma escola, seria tão absurdo quanto uma empresa dizer que irá se apropriar do ar.

– É evidente que palavras de uso comum não podem ser objeto de apropriação. É como se eu pudesse registrar São Paulo, e aí ninguém mais pudesse usar a palavra. Não posso garantir o monopólio de exploração de uma palavra normal se tenho milhares como essa no Brasil.

O que mais chama a atenção de Evangelista, no entanto, é o fato de a Fifa ter conseguido no INPI prioridade em relação a toda a fila de espera.

– Foi criado um procedimento específico para atender a Fifa. Existe todo um processo que demora no mínimo 3 anos para ser concluído, mas a Fifa está conseguindo em 2 meses. Isso porque criaram uma lei específica para atendê-los, porque a Copa do Mundo é no ano que vem e eles precisam de segurança jurídica para fazer um evento como este.

Futebol brasileiro

Se a Fifa, instituição máxima do futebol, toma precauções exageradas para proteger nomes relacionados aos seus eventos, em uma escala menor temos o mesmo com a CBF (Confederação Brasileira de Futebol).

A organização possui registro no INPI de Seleção Brasileira de Futebol, Seleção Brasileira, Seleção Canarinho de Futebol e Seleção Canarinho – mesmo que a expressão “seleção canarinho” tenha sido um apelido dado pelos torcedores brasileiros ao time.

Em adição a isso, em 2013 o senador Valdir Raupp (PMDB-RO) tenta aprovar um projeto de lei que cria mais marcas para a CBF, a exemplo de “Seleção”. O problema disso seria que um processo como esse precisa passar pelo INPI, do contrário não está sujeito às mesmas regras e não só poderá registrar uma palavra de uso comum como não oferecerá o direito de oposição (uma empresa ou indivíduo não pode entrar na justiça para se opor a uma lei).

 Na justiça

Por causa a todas as particularidades e exceções que surgem na prática ao registrar uma marca, a justiça precisa seguir rígidos critérios para não tornar a concessão de uma marca arbitrária, e criar diferentes pesos e medidas para diferentes casos.

Vilhena, especialista em Direito Constitucional, observa que existe certa leniência no Brasil em relação ao registro de termos de uso comum. Para ele, os critérios deveriam ser rígidos tais como os de patente, seguindo o critério de inovação.

– A razão pela qual eu permito esse sistema de proteger um produto ou marca é quando ele é fruto de uma inovação. A marca eu protejo quando ela distingue algo diferente de todas as outras.

Segundo o especialista, se houver um registro irregular, ou a proteção de uma marca baseada em uma palavra de domínio público, a justiça deve romper com essa proteção.