Discordâncias de reajuste, contabilização de gratificações, déficit orçamentário, quantidade de horas-aula, falta de vontade política. Resultado da confusão? A maior parte dos estados e municípios ainda não cumpre o Piso Nacional dos Profissionais da Educação Básica

Ainda não é dito popular, mas já é fato notório e de conhecimento geral que a existência de boas leis não é um problema para o Brasil, e sim o cumprimento delas. Por isso, quando o Congresso Nacional e o Presidente Lula aprovaram, em 2008, uma lei que regulamentava o piso salarial dos professores e de outros profissionais da Educação Básica da rede pública, o setor comemorou vitória antes da hora. A lei 11.738 comemora dois anos em julho deste ano, mas ainda não é obedecida pela maior parte dos municípios e estados do País. Para que adotem a determinação, porém, muitos nós e contradições ainda precisam ser desatados.

Logo de início, o documento prevê um salário de R$ 950,00 de base para professores, diretores, coordenadores, inspetores, supervisores, orientadores e planejadores escolares, valor esse que deveria ser reajustado em janeiro de 2009 e de 2010 (ver quadro na página XX). A partir daí formou-se a primeira confusão. De acordo com os cálculos do Ministério da Educação (MEC), que levou em consideração reajustes de 0% em 2009 e 7,86% em 2010, o valor atual (e oficial) do piso é de R$ 1.024,51, enquanto a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação) reivindica R$ 1.312,85.

A diferença se explica nos meandros da lei. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em resposta a uma ação de cinco estados contra a lei do piso, que o valor deveria ser cumprido a partir de janeiro de 2009 independentemente da decisão final do processo (que ainda não foi tomada). Os estados interpretaram, portanto, que a lei valeria a partir de janeiro de 2009 e não receberia o reajuste previsto no documento. O MEC adotou a mesma interpretação. “Eles desconsideraram um reajuste. Consideramos isso um erro, um absurdo, uma análise totalmente equivocada”, critica Roberto Leão, presidente da CNTE. “O MEC errou de novo ao fazer o reajuste em janeiro de 2010, porque fez com base no custo-aluno do Fundeb do passado, enquanto a Lei determina que seja feito com uma perspectiva futura.”

A Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) endossa o valor adotado pelo MEC, apoiando as decisões oficiais. “A CNTE é uma entidade que tem um papel fundamental na discussão da política educacional do país. Eles cumprem sua função de melhorar a condição de trabalho dos professores, mas a grande maioria dos municípios brasileiros não tem a capacidade orçamentária e financeira de arcar com isso”, declara Carlos Eduardo Sanches, presidente da organização. “Particularmente eu gostaria que o salário fosse até maior, mas trabalhamos com um orçamento como peça real e não fictícia. Temos dados em mãos que apontam que não há como dar conta de um valor como esse agora, embora seja um sonho de todos nós.”

E não há mesmo dinheiro para cobrir a folha de pagamento dos professores? Há controvérsias. Para Sanches, o maior impacto da crise econômica mundial no Brasil foi na Educação, com um déficit de R$ 9,5 bilhões que deixaram de circular no setor. “Por causa disso, muitos municípios enfrentaram dificuldades para efetivar uma política de valorização dos professores. Não adianta construirmos um plano que do ponto de vista da aplicabilidade não tenha razão de existir”, defende.

A lei do piso especifica, no entanto, que a União é obrigada a complementar os recursos financeiros para o pagamento dos profissionais quando o município ou estado não tiver condições de arcar com esse custo. Só que para receber o benefício, a administração deve apresentar uma planilha detalhada dos gastos com a pasta de Educação e se encaixar nos critérios exigidos pelo Governo Federal. “Existem hoje R$ 700 milhões à disposição de prefeituras que precisam da verba e ninguém vai buscar. Acontece que elas não têm as contas regulares da Educação, então não conseguem provar que não têm o dinheiro necessário para aumentar os salários”, denuncia Leão, da CNTE. “Quando os governos são informados o que precisam mostrar, desistem, porque existe um desperdício muito grande da aplicação da Educação em muitas áreas.”

O Senador Cristovam Buarque, autor da lei do piso, é ainda mais enfático: “Se fosse verba para obra, eles viriam correndo. O problema é que ninguém inaugura professor ou aluno”, disse ao jornal Folha de S.Paulo em março deste ano. Mozart Ramos, presidente da campanha Todos pela Educação, pondera que muitos municípios, em especial das regiões Norte e Nordeste do País, têm baixa arrecadação e não conseguem se enquadrar nos critérios do MEC. “Eles têm dificuldade de cumprir as exigências do Ministério porque, segundo eles, os pré-requisitos são extremamente burocráticos e tornam praticamente impossível de receber o benefício”, comenta. O MEC vê a peneira rigorosa como um ponto positivo. “Com certeza muitos municípios vão ter dificuldade, admito, mas as regras do piso servirão até mesmo para que muitos deles organizem melhor seus gastos”, afirmou o secretário executivo do Ministério, Francisco das Chagas Fernandes, em entrevista ao jornal potiguar Tribuna do Norte.

Como resultado do déficit orçamentário e das diferentes interpretações da Lei, o que observamos hoje no Brasil é uma completa disparidade no que diz respeito à folha de pagamento dos profissionais da Educação Básica. Enquanto estados como o Rio Grande do Sul pagam R$ 862,80, abaixo do piso sem reajustes, outras administrações ainda estão estacionadas nos R$ 950,00 da lei, outras adotam os R$ 1.024,51 do MEC e outras, ainda, os R$ 1.312,85 da CNTE. A cidade de São Paulo, em outro extremo, paga R$ 1.950,00 para os professores por 40 horas de trabalho semanais, 90% deles graduados no ensino superior, com um reajuste negociado que aumentará o valor para R$ 2.200,00. “Para aqueles que têm formação em nível médio, o piso para 40 horas passará a ser de R$1.821,12, mais de 80% acima do estabelecido como mínimo para o País”, informa Andrea Portella, porta-voz da Secretaria Municipal de Educação.

Mas a realidade de São Paulo está longe da do restante do Brasil. Para alcançar o valor do piso, muitas administrações públicas se apóiam na interpretação dúbia ou em alguma brecha da lei. O documento não especifica com todas as palavras, por exemplo, que as gratificações não podem fazer parte do salário. Mas para Roberto Leão, da CNTE, isso está claro. “Isso para nós é muito ruim e contraria o princípio de piso, porque para nós ele é um valor absoluto, único, um salário inicial. O problema de ter gratificação inclusa no valor total é que não incide em nenhuma vantagem pessoal e o professor não leva isso para a aposentadoria”, enfatiza. Ainda assim, muitos municípios e estados têm incluído as gratificações no valor do salário para complementar o piso, se aproveitando que o STF, em sua determinação provisória, aceitou a medida. “Tem uma enormidade de prefeitos e governadores que se dedicam 24 horas por dia para burlar a lei do piso. Alguns municípios já dizem que não vão contratar professores com formação de licenciatura, porque a lei do piso só diz respeito a professores com formação no nível médio. Eles deveriam pôr a mão na consciência e tirar o discurso que educação de qualidade do palanque e colocar na prática”, revolta-se Leão.

Existem ainda outras formas de burlar a lei do piso que têm sido postas em práticas Brasil afora. Beatriz Cerqueira, coordenadora do Sinpro-MG (Sindicato dos Professores de Minas Gerais), explica que o estado, além de pagar abaixo do piso (R$ 369,00 para formação no nível médio e R$ 550 para licenciatura plena, ambos valores referentes a 24 horas semanais), inclui as gratificações no salário-base e equipara docentes com formações diferentes. “Aqui não importa se você tem pós-graduação ou magistério. Outra questão é que se o profissional tem 20 anos ou um ano de experiência, o salário é o mesmo. São grandes distorções que não incentivam o professor a continuar a estudar”, afirma. Esse é outro desalinhamento com a lei do piso, que determina que o salário-base vale como valor inicial e deve evoluir com o plano de carreira. A Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais não respondeu ao pedido de entrevista da reportagem.

Valores proporcionais ao tempo em sala de aula

O número de horas-aula semanais é outro eixo do piso que tem gerado muita discussão em sua aplicação. Em primeiro lugar, porque embora a lei determine que o salário inicial é válido “para a jornada de, no máximo, 40 horas semanais”, quase todos os municípios e estados decidiram excluir as palavras “no máximo” e estabelecer que o piso vale apenas para 40 horas por semana e nada menos. É o que acontece em Goiânia, onde uma greve de professores se arrastou durante semanas pela falta de um consenso entre Secretaria Municipal e Sindicato dos Professores (Sintego). “Desde 2009 remuneramos os docentes com valor que supera o piso salarial nacional dos professores, previsto pela Advogacia Geral da União-AGU no valor R$ 1024,00 mais gratificações e demais aumentos previstos no plano de carreira e remuneração por uma jornada de trabalho de 40 horas semanais. Os professores reivindicam esse piso por uma jornada de 30 horas semanais, o que acresceria 38% da folha de pagamento da Educação, tornando-a inviável”, declarou a Secretaria em nota oficial (o órgão se negou a comentar o assunto em entrevista).

As 30 horas pedidas pelos professores de Goiânia são defendidas pela CNTE e foram concordadas também na Conae (Conferência Nacional de Educação) como tempo ideal em sala de aula, para que o restante do tempo (em geral 30%) seja aproveitado para planejamento e estudo do professor. “De início pedimos uma jornada de 30 horas, o que consideramos razoável para exercer o trabalho com qualidade. Os governos pensam que já que têm que pagar isso, vão aumentar as horas de trabalho do professor”, alerta Leão, da CNTE. Sanches, da Undime, coloca o outro lado da moeda. “Nós somos favoráveis ao piso, mas o que nos preocupa é a possibilidade de não conseguirmos assegurar de maneira imediata a jornada de um terço ara planejamento. Se fizermos isso, teremos que contratar 20% a mais de professores, em média, mas não temos orçamento para isso”, articula. “É preciso aumentar o tempo de planejamento, mas isso tem que ser feito de maneira planejada e com um período de transição de pelo menos cinco anos.”

Estados contra a União

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida por cinco estados no STF e citada no início desta reportagem foi motivada, entre outras razões, por essa questão da divisão do tempo entre planejamento e presença em sala de aula. “O entendimento é que a Lei desconsidera a autonomia dos entes federados e a competência dos Chefes dos Poderes Executivos de estabelecer, mediante iniciativa legislativa, o regime jurídico de seus servidores. Isto representa, inclusive, ofensa ao equilíbrio federativo, que prevê colaboração entre os sistemas de ensino, e não intervenção”, defende-se, por meio de um porta-voz, a Secretaria Estadual do Rio Grande do Sul, um dos estados que registraram a ADI. Para o RS, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Ceará (com apoio de outros estados), o Governo Federal deveria ter regulamentado apenas um piso, e não um valor específico, já que eles defendem que cada administração tem um orçamento muito diferente das outras.

Segundo o RS, o governo estadual encaminhou à Assembleia Legislativa uma proposta de piso salarial de R$ 950,00, a partir de 1º de janeiro de 2009, e de R$ 1.500,00, a partir de 1º de janeiro de 2010, para uma jornada de trabalho de 40 horas semanais, mas a lei ainda não foi examinada.

A ADI dos estados contra a lei do piso atual teve início em outubro de 2008 e ainda não chegou a uma conclusão. Até agora, o processo influenciou no valor oficial adotado pelo MEC e na contabilização das gratificações no salário-base. Além disso, paira no ar a crença de que o piso só passará a valer de verdade quando o STF chegar a um veredito. “A lei não está suspensa. Enquanto o Supremo não julga, está em vigor. Mas os prefeitos usam isso para não cumprir a lei. Os ministros do Supremo sentaram em cima do projeto”, critica o senador Cristovam Buarque. Enquanto isso, manifestações pipocam em todos os cantos do Brasil, desde grandes cidades como São Paulo, onde professores da rede estadual realizaram um protesto que resultou em 16 feridos em março de 2010, até capitais como Goiânia, Belo Horizonte e Recife, e pequenas cidades como Acari (RN), Abagé (BA) e Guaraí (TO), que não deixam de entrar em greve, mas que vivem ainda uma realidade muito distante do tão almejado piso salarial.


O que diz a lei

  • Quem é beneficiado? Profissionais do magistério público da Educação Básica (educação infantil, ensino fundamental e médio) com formação em nível médio
  • Qual é o valor? R$ 950,00 pela lei, com reajustes em 2010 para R$ 1.024,51, calculado pelo MEC, e R$ 1.315,85 pela CNTE
  • Aumenta em que progressão? O salário-base deve ser aplicado no início da carreira e aumenta de acordo com o plano de carreira
  • Quem paga? O orçamento para o aumento dos salários vem da arrecadação municipal/estadual, mas as administrações podem pedir recursos adicionais junto à União