Pensar na produção de um texto como a fabricação de um produto, com etapas que o completam, é essencial. Especialistas dão dicas passo a passo de como seguir esse processo.

Todo texto é um produto. E, como tal, passa por diversas fases de manufatura. Por isso, é uma ilusão acreditar que a escrita é algo simples, que começa com um momento de eureca, seguido do ato frenético de digitar uma redação final e resulta em uma obra-prima. O grande clichê não engana, e pode decepcionar os mais românticos: são 99% de transpiração e 1% de inspiração.

­– Se vamos comprar algo, fazemos uma lista (no papel ou na nossa cabeça) do que precisamos, onde buscar, quanto gastar. Se vamos fazer um bolo, precisamos reunir os ingredientes necessários, seguir o modo de fazer e saborear o resultado. Com a atividade de escrita, não é diferente: é preciso planejar, pôr em prática esse planejamento e fazer os ajustes necessários, antes de dar por concluída a tarefa – explica a gramática Vanda Maria Elias, professora do Departamento de Português da PUC-SP e coautora de Ler e Escrever: Estratégias de Produção Escrita (Ed. Contexto 2009).

Segundo Vanda, a falta desse planejamento faz com que o autor corra alguns riscos, entre eles o de não ser compreendido e não conseguir passar sua mensagem ao leitor. Para não cair nessa armadilha, o processo deve ser compartimentado em etapas, que em geral se aplicam a praticamente todos os tipos de texto. Aqui, dividimos esse passo a passo em ideia, pesquisa, estrutura, rascunho, texto final, revisão e publicação.

São fases muitas vezes negligenciadas por autores, que priorizam uma sobre a outra, em geral em função do tempo. No entanto, Eduardo Antônio Lopes, professor do Curso Anglo e autor do Sistema Anglo de Ensino, alerta que isso é um erro que põe toda a credibilidade do texto em jogo.

– Falhas em qualquer uma dessas habilidades podem comprometer diretamente o texto. Se a pessoa não tem clareza quanto ao propósito, se tem informações mal alinhavadas, isso compromete o resultado – afirma. Para ele, o maior descuido costuma ser com o rascunho. – As pessoas normalmente imaginam que um texto pode ser produzido em uma sentada. Em geral é a lenda de que se for feito um bom esquema, o texto vai sair pronto. É como se isso garantisse todo resto.

Uma forma de saber se um texto foi bem conduzido por todo esse processo, segundo Elisa Guimarães, professora titular na área de Língua Portuguesa da USP e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é observar se ele oferece as condições para elaborar um bom resumo.

– Notamos que o nosso aluno tende muito mais a “encher linguiça” do que a resumir um texto. Esse trabalho de resumo, de apreensão das linhas fundamentais, é de extrema importância para perceber como o texto está organizado, quais são as ideias ligadas ao tema.

Para entender e dissecar as etapas da arquitetura de um bom texto, Língua conversou com especialistas e profissionais que trabalham com o registro escrito.


A IDEIA

Diferentemente do que muitos acreditam, ter um insight não é algo que acontece “do nada”. O escritor Ricardo Lísias, autor de O Céu dos Suicidas (Alfaguara, 2012), conta que a ideia para um novo texto é um processo de união de diversas referências pensadas e pesquisadas ao longo do tempo.

­– Não é algo que “baixa” em você. Tenho um grupo de questões e trabalho com elas. E aí eu vou amadurecendo até sentir que está no ponto que dá para aprofundar – diz.

O professor Eduardo, do Anglo, complementa que esse é um processo reflexivo e complexo, pois frequentemente o tema pensado é apenas um ponto de partida ou um propósito. Vale a pena, portanto, criar o hábito de andar com um caderno e anotar referências, ideias, fatos presenciados, sonhos e qualquer outro tipo de registro que inspire o autor.


A PESQUISA

Uma ideia precisa ser lapidada para se tornar um texto, por isso sempre existe um processo necessário de pesquisa (também chamada de apuração) – defende Eduardo Lopes, do Anglo. Essa fase é, afinal, o embasamento do texto.

– Nem que seja uma pesquisa no seu repertório mental. Nunca é uma ideia original, é uma reelaboração do repertório cultural prévio.

Uma sugestão do professor é iniciar a pesquisa decidindo o gênero textual: será um post para a internet, uma crônica, um ensaio, uma reportagem, uma carta ou ainda outro?

A jornalista especializada em perfis Patrícia Negrão, coordenadora e coautora do livro Brasileiras – Guerreiras da Paz (Contexto, 2006), observa que a abundância de informações veiculadas especialmente pela internet permitem que o autor faça uma vasta apuração antes de escrever sobre um tema.

– O primeiro momento é ler muita coisa a respeito do que eu vou abordar e juntar muita informação (e depois checá-la). É necessário entender o máximo possível do assunto antes de começar a escrever.

O mesmo vale também para a ficção. Para escrever O Livro dos Mandarins (Alfaguara, 2009), Lísias fez aulas de chinês, entrevistas com executivos e aprendeu o quanto pode sobre o cotidiano corporativo e bancário, um processo que tomou 3 anos. Já em O Céu dos Suicidas, durante seis meses estudou diferentes visões religiosas sobre o suicídio. Para ele, esse processo é essencial para embasar um texto.


ESTRUTURA

Construir um esqueleto que servirá de base para o texto é, para muitos, a etapa mais importante da escrita. Isso porque, assim como em uma casa, uma fundação mal construída pode fazer toda a construção ruir. Eduardo Lopes, que prefere chamar a etapa de esquematização, observa que existem pessoas que se organizam melhor fazendo esse exercício durante o rascunho.

O escritor e ensaísta José Luiz Passos, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), faz uma meticulosa estrutura para os seus textos. Autor do ensaio Machado de Assis: o Romance com Pessoas (Edusp, 2007) e do romance O Sonâmbulo Amador (Alfaguara, 2012), o autor só consegue começar a escrever uma vez que encontra um título – ainda que ele mude depois. Além disso, toma constantes notas em cadernetas e começa a estruturar o texto em partes.

– Gosto de organizar blocos muito precisos, e eles são numerados. Escrevo meu sobre Machado de Assis em 70 blocos com temas diferentes. A cada tijolo (ou bloco) que vou colocando ali, tento alinhavar a ideia central do texto – explica.

A estratégia pode não ser uma regra, mas desenvolver o texto em blocos temáticos e depois criar uma coesão entre eles pode simplificar o processo e ajudar o autor a organizar suas ideias e tornar o conteúdo mais claro e coerente.

A professora Elisa, da USP e do Mackenzie, explica que esse tipo de esquema é separado em “organização temática” e “organização estrutural”, que podem ser definidos como conteúdo e forma. Na temática, é importante estar alerta à carga vocabular empregada e aos sinônimos para as palavras utilizadas, por exemplo. Já na estrutural, existe um comprometimento com a sintática do texto.

– Isso seria a maneira como faço um arranjo das palavras e frases em parágrafos entre si. A linguística textual chama isso de macroestruturação do texto, quando uma frase núcleo que sintetiza o parágrafo todo.


O RASCUNHO

Uma vez que a estrutura estiver pronta, é hora de articular seus principais pontos. Para alguns, esse é o momento de rascunhar. Para outros, é possível passar para uma primeira versão do texto final. Segundo Elisa, para ir para o papel, um texto bem torneado é aquele que mantém essa decorrência de ideias de forma que uma puxe a outra e nenhuma fique solta. Ela afirma que fazer ou não um rascunho depende da experiência daquele que escreve, e acredita que, dependendo do caso, um esboço pode ser substituído por um roteiro com itens que precisam ser abordados – que representaria a fase da estrutura.

Eduardo, do Anglo, defende que o rascunho é fundamental, pois o processo de escrita é não-linear e precisa dar a chance ao autor de “ir, vir, esboçar e voltar”. Mas quem prefere pode seguir um esquema – o que não pode é dispensar qualquer organização das ideias.

– É uma grande ingenuidade achar que o texto surge pronto na sua primeira versão, como se fosse uma inspiração avassaladora que toma a mente do redator e então o texto sai pronto, como se tivesse sido psicografado – brinca.

Nessa etapa, o professor sugere que o autor considere três elementos: a linguagem empregada, o repertório de conhecimentos que vai adotar e quais serão os valores morais.


VERSÕES E TEXTO FINAL

O caminho até o texto final pode ser longo ou curto, dependendo de tempo, gênero do texto, tema abordado e de uma diversa gama de fatores. Enquanto alguns gostam de elaborar uma versão, fechá-la e depois iniciar outra se necessário, outros ficam durante um longo período mexendo e remexendo no texto. A regra, para Eduardo, do Anglo, é que sejam feitas quantas versões couberem no tempo e tantas quantas sejam necessárias para conseguir trazer novos aprimoramentos. Para a professora Vanda Elias, da PUC-SP, a reescrita é algo que ocorre ao longo de toda a produção.

– Isso significa dizer que o produtor pensa no que vai escrever e em seu leitor, escreve, lê o que escreve, revê ou reescreve o que julga necessário, em um movimento constante e on-line baseado na interação.

A importância de fechar uma versão e esperar para fazer outra, segundo Eduardo, é deixar o texto descansar. Segundo ele, o autor pode fazer diversas modificações e se dar por satisfeito, mas depois de um tempo, quando voltar a ler, terá novas mudanças para fazer. Mário de Andrade, por exemplo, chegou a passar 10 anos nessa etapa de reescrita.

José Luiz Passos chegou a fazer 16 versões de um de seus livros. Ele gosta de imprimir cada uma delas e refazê-las à mão, depois passar as alterações para o computador e imprimir uma nova versão.

– Uma vez que está pronto, eu coloco na gaveta e se tenho tempo, deixo o texto respirar, amadurecer, e no outro dia eu releio. Eu nunca mando ele sem descansar.

Outra função das versões é editar o texto e lapidá-lo. O escritor conta que na versão mais ampla, ele tinha 500 páginas. Quando foi publicado, já possuía apenas 270.


REVISÃO

Outra etapa muitas vezes negligenciada por causa da falta de tempo é a revisão. Mas é nela também que se aplica o conselho de deixar o texto final descansar por ao menos uma noite e voltar a revisar no dia seguinte.

O revisor Silvio Lourenço, sócio-diretor da OK Linguística, afirma que uma revisão segura é feita pelo menos três vezes em um texto. No caso profissional, pelo autor, pelo editor e pelo revisor. No âmbito pessoal, é aconselhável que a pessoa releia depois de escrever e depois dê um tempo para fazer as outras releituras. Ele dá as dicas:

– O principal é consultar sempre boas obras de referência e fazer a releitura atenta daquilo que escreveu. Depois que enviou ou publicou, o texto não volta mais.

Elisa Guimarães explica que a revisão é também uma maneira de analisar se o processo do texto foi eficaz, ou se é necessário voltar e corrigir erros. Avalie: ele está inteiramente coerente e coeso? As ideias estão bem conectadas? A carga vocabular é adequada para aquele tipo de mensagem? A pontuação está bem empregada? E o tema, foi respeitado?


A PUBLICAÇÃO

Depois de tanto zelo na construção desse edifício textual, o autor pode relaxar e arquivar sua obra. Agora, ela é do público e não pode mais ser alterada. Por isso mesmo, Lísias acredita que ninguém deveria ler seus textos depois de publicados.

– Nunca li um texto meu impresso, a menos que precisasse de um trecho para ler em um evento ou em uma aula. Senão eu posso ficar angustiado com a ideia de mudar algo. Acho que ninguém tem que ler nada seu publicado, tem é que pensar no próximo texto.