Profissionais de diversas áreas ensinam técnicas de fisgar o público logo no início de textos e discursos e despertando seu interesse pelo que está por vir

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” O início de A Metamorfose, de Kafka, é uma definitiva prova de que um começo de texto bem elaborado é a garantia de ganhar a atenção do leitor logo de cara.

– O caso clássico da Metamorfose de Kafka é brilhante porque já nos coloca de início diante do monstro em que se transformou o cidadão pacato. É assombrador, porque está entre a simples alegoria e uma descrição realista que incomoda –, analisa Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.

Uma boa introdução é também é um indício de que aquilo que está por vir é igualmente bom, e por isso desperta a curiosidade e a expectativa do público. –Preciso ler livros que me prendam no primeiro parágrafo –, afirma o escritor Evandro Affonso Ferreira. Para ele, um livro pode começar bem e terminar mal (ainda que isso seja mais difícil), mas dificilmente um que começa mal tem um bom desenrolar.

– Mesmo se ele terminar bem, não adianta nada, porque eu não vou acabar de ler para ver se ele termina bem.

Dicas

Por isso, um livro que fica gravado na memória e se torna uma referência, para o Evandro, tem um início arrebatador. E isso se aplica não apenas à literatura. Em uma época em que o tempo é escasso, a atenção é dividida entre estímulos vindos de todos os lados e corre a crença de que tudo já foi dito, roteiros, aulas, apresentações, palestras, discursos e redações de vestibular seguem o mesmo princípio de buscar impactar o público nos primeiros minutos para conseguir que ele chegue até o fim com o mesmo interesse com o qual começou. Por isso, reunimos algumas técnicas e estratégias para fisgar sua audiência logo de início. O primeiro passo, segundo a professora Maria Aparecida Custódio, do Laboratório de Redação do colégio e do cursinho Objetivo, é se colocar no lugar do público.

– Você continuaria a ler o seu texto a partir do primeiro parágrafo? –, ela questiona. Um exercício feito na Academia do Palestrante, escola de São Paulo que oferece treinamentos para ministrar palestras, é pedir que a pessoa introduza sua apresentação e ouça depois dos colegas o que eles entenderam do que foi dito.

– Muitas vezes o que entendem é muito diferente do que a pessoa quis dizer. Muitas pessoas são inteligentes, sabem muito do assunto, mas quando precisam expressar isso, é um desastre –, conta Edmar Oneda, fundador da Academia e especialista em programação neurolinguística.

Uma sugestão de Monteiro é usar referências anteriores para se inspirar, mas sem se prender a elas. O ideal, segundo ele, é ficar entre a inspiração de uma cena inicial já vista e o desejo de inventar algo ainda não visto. Embora seja provável que o inconsciente domine e o empurre para um início que já existe, é primordial que seja uma cena que marque um tom, “funcionando como uma espécie de diapasão que vai soar no ouvido do leitor páginas adentro”.

Essa é uma dica também do roteirista e escritor Ricardo Tiezzi, professor da pós-graduação em Roteiro da Faap e da Academia Internacional de Cinema: os primeiros minutos devem dar o tom do resto do filme, apresentando uma pílula daquilo que está por vir. Assim como o senso comum diz que um filme de ação precisa começar com uma boa cena de ação, demais textos em geral devem seguir a mesma premissa.

– Se o seu filme é mais contemplativo, não faria sentido começá-lo com uma cena bombástica. É um pacto imaginário que diz: veja aqui um filme de aventura, perseguição etc.

Roteiro

A escrita de um roteiro traz outras lições aplicáveis à literatura e a outros tipos de texto. Tiezzi ensina que o primeiro passo na elaboração de um roteiro é encontrar a ação significativa, ou seja, que informações sobre aquela trama precisam ser passadas para o público logo de início. Mas ao contrário do texto jornalístico, que objetivamente deve responder no primeiro parágrafo as perguntas o que, quem, quando, como, por que e onde, para situar o leitor no assunto, o roteiro, assim como outras expressões artísticas do texto, precisa expor as mesmas informações de maneira menos óbvia e banal.

– Expor escondendo significa dar a informação inserida em uma ação dramática, sem ficar claro que ela está sendo dada. Digo sempre que uma abertura é como o xadrez: se for feita bem, você tem o jogo nas mãos.

Exemplo disso é o filme Kramer vs. Kramer (1979), com Dustin Hoffman e Meryl Streep, em que, em uma cena de café da manhã, sem que seja preciso explicar nada, o público fica sabendo através de pequenas ações que o personagem de Hoffman não consegue lidar com a situação de administrar sua carreira, ser abandonado pela esposa e cuidar do filho ao mesmo tempo.

Cartas na mão

Embora não seja aplicável a todos os tipos de texto (em alguns casos, quanto mais objetividade, é absolutamente necessário falar tudo já de início), a técnica da “exposição” consiste em deixar o tabuleiro bem armado para a história. Não é necessário colocar todas as cartas na mesa porque, segundo Tiezzi, as que ficarem na sua mão irão plantar suspeitas narrativas e, assim, despertar a curiosidade do leitor.

– A arte dessa exposição é justamente conseguir estabelecer o jogo e apresentar o mundo no qual os personagens estão inseridos, mas não descarregar um caminhão de respostas para o espectador, e sim conseguir plantar as perguntas certas.

Nesse sentido, o roteirista alerta para que, ao escrever, deve-se evitar trazer excesso de informações ao público, pois isso não gera expectativa pelo que está por vir.

Outra técnica para roteiros que podem ser úteis a outros tipos de introdução é a desorientação. Ao apresentar uma série de ações que deixe o público sem respostas, é criada a sugestão que estimula a curiosidade. E o espectador, que quer saber o que está acontecendo e o que é aquilo quer ver o desenrolar da trama. Tiezzi exemplifica isso com o início de O Último Tango em Paris, de Bertolucci, em que o personagem de Marlon Brando está próximo à linha do metrô e aquele barulho lhe parece ensurdecedor.

– Só sabemos que é um homem em colapso. Você se sente desorientado diante daquela cena e vai acompanhando a vida daquele homem.

Vestibular

Se a essência de um roteiro e um texto literário é a dramatização e subjetividade, de outro lado temos contextos em que precisamos de objetividade e pragmatismo. É o caso da redação de vestibular, em geral dissertativa.

Maria Aparecida, do Objetivo, explica que embora as maneiras de começar uma redação sejam inúmeras, para escolher a sua introdução é primeiro preciso avaliar o tema proposto e qual é o seu conhecimento e domínio sobre aquele assunto. Uma forma indicada de introduzir o texto é contextualizar o tema historicamente, seja ele objetivo ou subjetivo.

– Vemos muito isso nas redações nota 10 da Fuvest. Essa contextualização é decisiva para ganhar a banca, porque mostra que o candidato tem repertório cultural e diversificado, e consegue remeter o leitor a uma outra época.

Outra maneira é começar colocando contrastes e estatísticas, que informam e interessam o leitor. Maria Aparecida sugere também outras formas mais subjetivas de iniciar uma redação: uso da linguagem figurada (desde que usada comedidamente), citações (contextualizadas, de alguém que confira credibilidade ao texto), e narrativas. Mesmo que o texto seja dissertativo, iniciar com uma breve referência ou uma história é convidativo.

Narrativa

– No ano em que houve uma proposta para falar sobre amizade, houve um candidato que contou a história do filme O Náufrago, em que o Tom Hanks cria um amigo imaginário, Wilson, que é na verdade uma bola. Tudo isso para provar que precisamos de amigos. Quando houve o tema individualismo, um candidato contou a história do filme Sete vidas, com o Will Smith, em que ele provoca um acidente e procura sete pessoas dignas de receberem seus órgãos porque ele vai se suicidar.

A história pode também fazer parte da vida do estudante. Segundo a professora, essa técnica tem bastante sucesso porque prende a atenção do leitor.

Um recurso ousado em uma dissertação é contrariar a banca. Maria Aparecida não o recomenda, pelo risco da redação ser lida por um examinador conservador, mas ainda assim tem o seu valor e é bastante interessante. Ela conta que no ano em que o tema da Fuvest foi a amizade, um aluno surpreendeu pela ousadia, falando que a amizade não significava nada (e embasando sua tese) e ignorando os textos-base, que contextualizavam a amizade ao longo dos séculos. Sua redação teve nota máxima, mas foi na contramão do que era esperado.

Fórmula

Esse recurso do inusitado é também bastante usado em textos literários e essa quebra de paradigma pode ser uma boa maneira de capturar a atenção e o interesse do leitor. No entanto, Pedro Monteiro, de Princeton, adverte: é preciso ter cuidado com as fórmulas.

– O problema é que, empregada à risca, uma fórmula costuma converter-se numa armadilha que engolfa o escritor, tornando-o escravo de um fantasma, que é aquele leitor que “só vai gostar do meu texto se eu agradá-lo”. As melhores obras são as que incomodam, tanto quanto deslumbram.

Para o professor, a simulação de uma sensação de desconforto ou a apresentação ao leitor de um cenário ou uma imagem marcantes (potencialmente inesquecíveis) são os melhores inícios.

Inquietude

Esses são as introduções prediletas de Evandro Affonso Ferreira. Ele defende o gosto por mexer com tudo aquilo que inquieta o leitor. Mas aquilo que inquieta alguns não tem o mesmo sentido para outros, por isso é necessário conhecer e conquistar seu público específico.

– Para isso não tem segredo, você precisa conversar com o seu grupo leitor. Quero pegá-los pela inquietude e não pela alegria ou pela beleza da vida. Que a minha inquietude pegue a inquietude do leitor, e aí cada um que procure seu leitor. Quero poucos e inquietos leitores. Leitores felizes eu deixo para outros autores.

Os inícios preferidos de Ferreira, entre suas obras, são os dois últimos livros: Minha Mãe Se Matou Sem Dizer Adeus e O Mendigo Que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam. De quebra, Evandro revela o início impactante de seu próximo livro: “Os piores dias de minha vida foram todos.”

O escritor afirma que exige de si mesmo um começo impactante para todos os seus livros, e que muitas vezes escreve o texto até a metade para depois escrever o início.

Cada um com sua forma preferida, todas com algo em comum: referências. Monteiro lembra do livro Beginnings, de Edward Said, em que o autor descreve o começo não apenas como a porta de entrada da obra, mas é também o ponto de comunicação com todas as outras obras, que ficaram fora.

– Adoro essa ideia, porque ela mostra que o livro que escrevemos é uma espécie de tábua de salvação no mar da literatura. E um início pode ser justamente o momento em que o narrador e o leitor agarram essa tábua, sentindo de repente que talvez seja possível evitar o naufrágio.

Por isso, é importante buscar suas referências e inspirações e criar sua própria tábua de salvação.


As características de um bom começo

  • Usar referências para se inspirar, mas sem apelar para inícios já existentes;
  • Dar o tom do que está por vir, fazendo uma pílula do conteúdo que se segue;
  • Organizar as informações básicas que devem ser passadas ao público;
  • Em textos mais subjetivos, não colocar todas as cartas na mesa nem despejar muitas informações de uma só vez sobre o leitor;
  • Brincar com a desorientação, a inquietude e contrariar aquilo que é esperado (não aplicável a todos os casos);
  • Contextualizar a ação ou tema;
  • Em textos mais objetivos, fazer comparações e trazer dados estatísticos;
  • Utilizar figuras de linguagem.

Clássicas introduções

  • Utilização de provérbios e anedotas;
  • Uma narrativa ou ação que situe o tema em uma história;
  • Definição de dicionário ou a explicação e descrição teórica de determinado fenômeno;
  • Opinião sobre determinado assunto;
  • Citação de terceiro;

Aberturas impactantes

Profissionais e especialistas citam introduções memoráveis.

Maria Aparecida Custódio, Objetivo

  • “Era no tempo do rei.” Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida.
  • “Marcela amou-me por quinze meses e onze contos de reis.” Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (não é o início de um livro, mas de um capítulo).
  • “Dizem que sempre falta uma palavra e é verdade. Nesses anos todos eu sei que sim, que sempre falta uma palavra, é verdade. Verdade. Pois procurei por Belinha, depois de 50 anos, 50 anos, para dizer para ela essa palavra. Sempre falta uma palavra, verdade verdadeira. E eu fui para dizer para Belinha essa palavra.” Belinha, de Marcelino Freire.
  • “O cara diz que te ama, então tá. Ele te ama. Sua mulher diz que te ama, então assunto encerrado. Você sabe que é amado porque lhe disseram isso, as três palavrinhas mágicas. Mas saber-se amado é uma coisa, sentir-se amado é outra, uma diferença de milhas, um espaço enorme para a angústia instalar-se.” Sentir-se Amado, de Martha Medeiros

Evandro Affonso Ferreira, escritor

  • “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei.” O Estrangeiro, de Albert Camus
  • “Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável.” Memórias do subsolo, de Fiodor Dostoiévski.
  • “Associo, com ou sem razão, o meu casamento à morte do meu pai.” Primeiro Amor, de Samuel Beckett.
  • “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.” Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
  • “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Anna Karenina, de Leon Tolstoi

Pedro Monteiro, Universidade de Princeton

  • “Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Vou dormir’. E, meia hora depois, a ideia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V.” Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust
  • “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.” Lolita, de Vladimir Nabokov
  • Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar (trecho longo para reprodução)