É comum que muitos se sintam paralisados na hora de começar a escrever um texto. Nessa matéria, especialistas e profissionais oferecem estratégias para driblar esse bloqueio

Até Stephen King tinha medo da página em branco. Em pelo menos três de seus livros adaptados para as telas, o escritor discorreu sobre a familiar frustração de encarar uma folha vazia sem conseguir começar um texto. Nas histórias, a improdutividade do escritor era enlouquecedora – até mesmo literalmente. Em O Iluminado, por exemplo, o protagonista Jack Torrance, interpretado por Jack Nicholson, começava a escrever um livro e enfrentou a página em branco na máquina de escrever durante um mês. Mas King não foi o único perturbado pela necessidade de iniciar um texto e o bloqueio mental para fazê-lo. O escritor de programas de televisão Isaac Davis, personagem de Woody Allen em Manhattan, também ensaiou diversas vezes sem sucesso ao introduzir um texto de abertura para o filme. Mas poucos no cinema foram assombrados pelo fantasma da página em branco como Guido Anselmi, o cineasta vivido por Marcello Mastroianni em 8 ½, de Federico Fellini, que precisa escrever o roteiro de um filme que já começou a ser rodado, mas não consegue iniciar.

Não é necessário ser escritor ou cineasta para ter experimentado essa sensação: quem já não passou pela angústia de não conseguir dar um pontapé inicial em um texto? Se esse é o seu caso, não entre em pânico. Reunimos algumas estratégicas e dicas de profissionais de diversas áreas que usam a escrita em seu dia a dia e sugerem maneiras de combater esse bloqueio com mais facilidade.

Antes de sentar para escrever, alguns cuidados devem ser observados. Em primeiro lugar, explica a professora de redação do cursinho e colégio Objetivo Maria Aparecida Custódio, conhecida por Cida, é necessário estabelecer a finalidade do seu texto e quais são as possíveis formas de tratar do assunto, buscando sempre capturar o interesse do leitor. “A partir disso, o ideal é registrar as ideias relacionadas ao assunto da maneira mais espontânea possível; somente depois vem a preocupação com o vocabulário, com a ortografia e com a organização do texto. Primeiramente vem o conteúdo; em segundo, a forma”, afirma. Sônia Belotto, escritora, editora de livros e professora de oficinas de escrita criativa, adiciona que, para começar a escrever e ter um bom resultado, existem três condições básicas: “conhecer o público alvo, dominar o assunto escolhido e conhecer as técnicas de escrita”.

Edwiges Morato, professora livre docente do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, alerta que aquilo que se coloca no papel deve fazer sentido para quem escreve, caso contrário haverá dificuldade de iniciar o texto simplesmente por não conseguir se identificar com o tema. Ela dá o exemplo da redação de férias que muitos professores propõem aos alunos na volta às aulas. “Não é à toa que demora para conseguir escrever algo. Se algo está fora de contexto, perde o sentido”, diz. Exemplo disso é a compositora e cantora Zélia Duncan, que ao escrever uma letra procura sons, na melodia, que a remetam a alguma palavra. “É comum o parceiro mandar a melodia cantada sem letra e ali já tem um som me dizendo alguma coisa”, conta.

Anotadas as dicas, é hora de perder o medo da página em branco. Mas na falta do começo ideal para o texto, não vale escrever qualquer coisa e seguir em diante, só para tirar o bloqueio do caminho. O jornalista Sérgio Rizzo, professor de jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e crítico de cinema, conta que seus alunos muitas vezes superam a dificuldade para começar um texto com soluções burocráticas, e por isso ele sugere que voltem ao início e vejam o momento dedicado à abertura do texto como um investimento, e não uma perda de tempo. E, acima de tudo, é preciso encarar essa dificuldade de começar um texto como algo normal, que a maioria das pessoas enfrenta frequentemente e que faz parte do processo de construção linguística. “Esse lapso não pode ser tratado como uma síndrome, como se fosse um mal ou uma patologia a serem erradicados. Assim como acontece o esquecimento na hora da fala, quando perdemos a palavra, esse lapso acontece na hora da escrita também”, observa a professora Edwiges.

Por que comigo? Por que agora?

Ainda que o lapso seja normal ao processo linguístico, escrever não é, para a maioria das pessoas, uma tarefa tão simples quanto falar. Por isso, mais dia ou menos dia, damos de cara com uma página em branco que não conseguimos transpor. Não existe um motivo comum a todos para que isso aconteça. Mas existem razões que frequentemente causam esse bloqueio.

Uma das mais comuns é psicológica: o medo de começar a escrever é o medo que o resultado não seja bom. Segundo Cida, do Objetivo, essa autodepreciação nos impede de expor nossas falhas, mas também de revelar nossas qualidades. Quando escrevemos estamos nos expondo, e o fato desse resultado ser submetido à avaliação de outras pessoas pode gerar o medo de começar a escrever. “Estamos muito mais familiarizados com a fala do que com a escrita. Assim, é natural que nos sintamos inibidos diante da folha em branco. A palavra escrita fica registrada, como que a revelar nossas supostas deficiências”, diz. Em suas oficinas de escrita criativa, Sônia observa o mesmo. Muitos dos alunos que não conseguem iniciar seus textos relutam com o perfeccionismo, a ansiedade e a insegurança de se expor, mas Sônia garante que isso tudo é superado com exercícios de escrita. “Muitas vezes, a ansiedade em encontrar um bom tema, a capacidade em cumprir prazos e se expor ao colocar as ideias no papel pode acarretar dificuldade, assim como a insegurança, a falta de motivação e, principalmente, não conhecer as técnicas de escrita”, afirma.

O escritor Ricardo Lísias dá aulas de gramática para universitários da área de exatas e, por conta de sua profissão, também convive com muitos aspirantes a escritor. Ao comparar os dois grupos de pessoas, ele comenta que seus alunos de exatas escrevem com muito mais facilidade do que os aprendizes de escritor porque não se autocensuram e veem a tarefa com mais objetividade, e por isso sofrem menos no processo de construção do texto.

Construir o caminho das palavras

Encarar um texto com objetividade é uma boa pista para não travar ao começar. Ainda que o conteúdo possa ser subjetivo, a tarefa de colocá-lo no papel deve ser objetiva. Isso significa construir uma estrutura textual e traçar um planejamento detalhado do que será escrito e como isso será feito. “Eu nunca chego à página em branco sem saber o que vou escrever. Faço 1001 esquemas, planos, detalhes, listagens, pesquisas, fichas de personagem, e, quando chego nesse momento da criação, já tenho muito claro o que eu vou escrever. Achar que o texto sai do nada é o que causa ‘o nada’”, aponta Lísias. Por isso, a sugestão é fazer esboços e esquemas para montar um esqueleto sólido o suficiente para não dar margem ao bloqueio – afinal, já se sabe o que será escrito.

O administrador Augusto Campos, que atua na área de Planejamento Estratégico e escreve para os sites BR-Linux, BR-Mac e Efetividade, conta que essa estratégia equivale para ele na hora de escrever ao “empurrão que faz o carro sem bateria ‘pegar no tranco’”. Ele deixa de lado a folha (ou a tela) em branco, lança mão de um papel de rascunho e faz uma lista de quais temas precisam ser abordados, quais ideias não podem deixar de ser mencionadas e quais perguntas devem ser respondidas. “Ao pensar neste conjunto, é inevitável atentar para o encadeamento entre as partes e, sem perceber, você já estará redigindo a versão inicial – depois é só colocar no papel”, diz. Sérgio Rizzo sugere outra maneira de estruturar o texto que aprendeu no início da carreira com um jornalista experiente: dividir os parágrafos em blocos. Às vezes, para melhorar a estrutura, funciona recortar o papel em torno dos parágrafos já escritos, ou de temas que devem ser abordados, e montá-los em uma ordem mais coesa. Isso pode consumir um tempo precioso, mas Rizzo garante que vale a pena. “Passei a encarar esse tempo perdido na abertura como um investimento feito no restante do texto. Digamos que você perca três horas no começo: a estrutura te deu um final, apontou caminhos, e então o resto será rápido”, diz.

Da prática à perfeição

Não tem jeito: a facilidade de começar e desenvolver um texto só chega com a prática e exercício constante. É irreal – ou, pelo menos, raro – esperar que um texto surja pronto na cabeça de um momento para outro, como uma inspiração divina. “Faísca, inspiração, insight só surgem com esforço e dedicação, que precedem em muito tempo o ato de escrever”, afirma Cida, do Objetivo. Por isso, a dica da escritora e editora Sônia é estipular um horário fixo diariamente e escrever, pelo menos, uma página, o que o levará rapidamente a escrever de forma natural e dinâmica. “Da mesma maneira que fazemos caminhadas ou frequentamos uma academia para exercitar a musculação, escrever promove o exercício da escrita e, quanto mais exercitarmos, mais facilidade vamos encontrar na medida em que escrevemos”, aponta.

O mesmo vale para qualquer profissão, afinal a familiaridade com a escrita ajuda qualquer um que tenha que ou goste de escrever. Se não é possível praticar diariamente, que seja pelo menos duas vezes por semana. Segundo Rizzo, o exercício dessa arte todos os dias é o que o ensinou a lidar com as dificuldades que aparecem na hora de redigir o texto, porque o colocou em uma situação de ter que enfrentar os problemas que surgiam todos os dias na hora de escrever e, assim, ganhar know how. “É um pouco como um cachorro na piscina – ou ele põe a pata para cima da água e aprende a nadar, ou ele morre. Se você produz cotidianamente o texto, também precisa aprender a se virar”, compara.

O mesmo princípio vale para a leitura. Segundo Rizzo, as pessoas têm lido textos mais curtos e enxutos, especialmente na internet, e isso faz com que quem escreve tenha pouco contato, no dia a dia, com textos mais elaborados. “Quando eu comecei na carreira, me inspirava muito em reportagens legais que tinha lido, aí pensava em como adaptar aquilo para o que eu tinha que escrever”, conta. Outra dica é ler textos de fôlego escritos originalmente em português logo antes de esboçar as primeiras palavras do texto, pois funciona como uma espécie de aquecimento. “O leitor assíduo conta com um vasto repertório linguístico e cultural que lhe oferece amplas possibilidades de iniciar um texto. Além de contar com as palavras, principais auxiliares do pensamento, ele pode enriquecer o conteúdo de seu texto com um conhecimento diversificado, adquirido nas mais diferentes fontes”, observa a professora Cida.

Deadline

Construir uma estrutura para o texto e praticar a leitura e a escrita são estratégias eficazes, mas que tomam certo tempo. Por isso, nada como a aproximação do dia ou horário de entrega de um texto para soltar as amarras que o impediam de fluir. Rizzo diz que muitos de seus melhores textos foram produzidos próximos ao deadline, como se sua criatividade funcionasse melhor. A compositora Zélia Duncan não gosta de trabalhar sob pressão, ou seja, perto do prazo, mas confessa que eventualmente é ele que a desbloqueia para começar uma letra. “Eu demorei muito para começar a fazer a letra de ‘Inclemência’, pois era algo sério, uma melodia do maestro Guerra Peixe. Protelei durante meses, até que me deram uma prensa. Sentei e fiz a letra em meia hora. É uma das parcerias minhas de que mais gosto e tenho orgulho”, conta. Mas, no fim, Zélia conclui que as dificuldades para começar a escrever são ossos do ofício. “Creio que todos, em algum momento, se sentem um pouco sem saída, mas isso está super implícito no ofício de escrever, compor, seja lá o que for. O pintor diante de uma tela, quantas vezes não desistiu? Mas se fosse fácil, não seria tão profundo e qualquer um faria.”


Confira mais dicas para começar um texto

Ignorar distrações e se aquecer
“O jornalista aprende a escrever em condições que normalmente aterrorizantes para outras pessoas, com barulho, movimento e muitos fatores dispersivos. É importante aprender a lidar com distrações, pois tenho a impressão que a dificuldade de escrever de muitos alunos meus acontece por conta dessa distração. Outra questão é que quando temos que nos dedicar ou a textos muito longos e reflexivos ou a um volume de textos encadeados, como uma tese, é de grande ajuda se permitir um tempo de aquecimento. Por isso é importante que você tenha horas para queimar, porque a máquina começa funcionar depois de algum momento. É essencial que cada um descubra a sua curva de aceleração, como a de um carro – quantos segundos demora para ir de zero a cem quilômetros por hora?” Sérgio Rizzo, jornalista, professor e crítico de cinema

Não insistir, nem parar
“Se travou geral, melhor respirar antes de insistir de um jeito improdutivo. Depois transformar a trava em uma procura, em um exercício, lembrar que o caminho deve ser sempre mais interessante do que a chegada. Ruim mesmo é deixar por fazer – isso solidifica a paralisia. Sou a favor de anotar ideias, escrever um pouco sem compromisso, se provocar.” Zélia Duncan, cantora e compositora

Pular o começo
“Para os casos mais comuns do dia a dia, quando não se trata de um texto jornalístico, o empurrão mais simples é deixar de lado a abertura e os parágrafos iniciais e ir direto para a conclusão, que geralmente afirma um conjunto de ideias que o autor já tem claras em sua mente. O processo de redação deste trecho geralmente é capaz de encadear as ideias que faltam para depois ir construir (já aquecido) os parágrafos iniciais.” Augusto Campos, administrador

Não se cobrar demais

“Primeiramente, procure manter o lugar onde escreve arejado, respire e relaxe por alguns instantes. Comece a escrever o que lhe vier à cabeça e não se faça nenhum tipo de cobrança, principalmente sobre ser original ou ter obrigação de escrever um best-seller. Quando estiver escrevendo, apenas escreva, sem se criticar, revisar seu texto ou tentar organizá-lo enquanto escreve. Esperar a inspiração aparecer também não é um bom negócio, pois escrever requer muito trabalho, como qualquer projeto de vida.” Sônia Belotto, escritora e editora de livros

Na hora do vestibular

“Fuga ao tema proposto, desconhecimento do assunto a ser abordado e ausência de domínio da expressão escrita são alguns dos maiores entraves à produção textual. O vestibulando pode vencer essas dificuldades lendo atentamente o enunciado e à proposta de redação, a fim de entender o que se pede; em seguida, deve ler os textos apresentados pela Banca Examinadora como base ou estímulo, identificando a idéia principal de cada um deles, a fim de, posteriormente, aproveitá-las em sua redação. Caso tenha dificuldade de entender os textos, o estudante pode tentar parafraseá-los, ou seja, reescrevê-los com outras palavras. Essa técnica, de buscar sinônimos para as palavras, costuma ser bastante útil não só para facilitar a compreensão, mas também para estimular a imaginação e ampliar as possibilidades de abordagem do tema.” Maria Aparecida Custódio, professora de Redação do cursinho e colégio Objetivo


Médica sem palavras
“Quando estava me candidatando à residência médica em instituições americanas, tive que escrever uma carta de motivação para cada hospital, explicando as razões para escolha da especialidade daquele programa em particular e por que eu era candidata perfeita para aquela vaga. Foram em média quarenta cartas neste processo e eu não tinha a menor ideia de como começar! Primeiro porque era numa outra língua, o inglês, e segundo porque não conhecia o público alvo e estava insegura sobre que nível de linguagem usar e, principalmente, porque o texto exige certo nível de pessoalidade e autoconhecimento, o que significava transpor várias barreiras culturais que ficaram óbvias durante este processo. O parágrafo inicial, sempre uma barreira, eu geralmente deixo por último, só retomo depois que escrevo todas as ideias e as vou costurando ao longo do texto. Eu costumo sempre elaborar a ideia principal oralmente e depois tentar fazer disso um parágrafo coeso, mas nem sempre é fácil.” Juliana da Silva, médica