Boca do Acre (AM) conseguiu combater a baixa qualidade da educação e a distorção idade-série a partir da polarização de suas 102 escolas rurais em 12 núcleos regionais que se comunicam com a Secretaria.

O desafio da qualidade da educação é igualmente difícil de ser alcançado seja por cidades grandes, com alto orçamento público e boa infraestrutura de escolas e transporte, seja por pequenos vilarejos nos confins do País. A meta está no topo da lista de prioridades de redes municipais e estaduais Brasil afora, mas o que significa buscar excelência no ensino quando se enfrenta, no dia a dia, as adversidades de educar na Amazônia?

O município de Boca do Acre (AM) tem superado o desafio e deixa valiosas lições que podem servir de exemplo para outras redes que precisam lidar com obstáculos geográficos, sociais e de gestão rotineiramente. Isolada, a pequena cidade de 31 mil habitantes está ligada por uma única estrada a Rio Branco (AC), a 200 quilômetros, e a Manaus, a cerca de 1500. O principal meio de transporte local são as catraias, pequenas embarcações que circulam pelos rios. A estrada que liga Boca do Acre ao município mais próximo, a capital acreana, ainda não é pavimentada em todo o trecho amazonense, o que faz com que a população fique isolada nas épocas de chuva – que ocorrem em boa parte do ano – e só receba abastecimento de alimentos e outros produtos nas épocas de seca do ano. Com a seca, porém, os barcos que distribuem merenda escolar às 110 escolas municipais têm dificuldade para trafegar.

Mesmo em condições normais, não é raro que funcionários da secretaria levem cinco dias para conseguir visitar uma única escola da zona rural, ou que uma sala de aula tenha dois alunos por dificuldade de acesso. “Para um aluno chegar em uma escola na Amazônia anda em catraia cerca de uma, duas horas. Outros andam uma ou duas horas no meio da floresta. Tem toda uma dinâmica específica e temos que lidar com ela. Em função disso, às vezes uma escola tem dois, cinco alunos, e nós atendemos porque é uma obrigação e direito”, explica Alcimar de Souza, secretário municipal de Educação de Boca do Acre. “As adversidades de ensinar no meio da Amazônia são muitas, mas não consideramos como dificuldades, mas como desafios”, completa.

A afirmação do secretário se confirma com a transformação sofrida pela educação municipal na zona rural na última década. Desde 2002, quando o município, em parceria com o Instituto Ayrton Senna, decidiu atacar os problemas da educação, que revelavam sua gravidade principalmente pela distorção idade-série, o Ideb cresceu para 3.0 em 2005 – não havia medição antes deste ano – e para 4.4 em 2009, nas séries iniciais, meta que era projetada para 2015 e que foi o mais alto do estado do Amazonas. Nas séries finais, o índice atingiu 4.8 no ano passado, segundo no estado. Para quem acompanhou de perto, os avanços foram tão grandes que parecem desproporcionais. Os professores não eram qualificados – muitos tinham escolaridade apenas até o quinto ano –, os alunos não compareciam às aulas e muitas vezes passavam de ano, o calendário escolar era ignorado e frequentemente as aulas eram suspensas, a secretaria não estava a par do que acontecia em sua rede, as escolas da zona rural (102 das 110) muitas vezes se resumiam a um quarto na casa de um professor.

Hoje, os resultados podem ser atestados na empolgação com a qual os profissionais da educação do município falam dos avanços, mas os números são a maior testemunha do salto do ensino de Boca do Acre. A aprovação passou de 45% (2001) a 88,7% (2009) nas séries iniciais e de 48,2% a 89,9% nas finais. A reprovação baixou de 22,6% para 6,8% nas iniciais e de 7,5% para 3,5% nas finais. O abandono, por sua vez, caiu vertiginosamente de 32,4% para 4,4% nas séries iniciais e de 44,3% para 6,3% nas finais. Em 2001, apenas 38% dos alunos aos sete anos estavam alfabetizados, contra 90% da mesma faixa etária em 2009. Por fim, a distorção idade-série (na zona urbana até a antiga quarta série) caiu de impressionantes 69% para 14%. “Também verificamos que o cumprimento do calendário escolar chegou hoje a 100%, a frequência do professor está cerca de 99% e, a dos alunos, 96%. Antes, a frequência não era registrada, mas girava em torno de 50% a 60%”, observa Inês Niskalo, coordenadora de educação formal do Instituto Ayrton Senna, que trabalha junto ao município para melhorar a qualidade da educação local. Ela se empolga com as mudanças que assistiu nos últimos anos. “Em 2002, Boca do Acre não tinha uma banca de jornal. Agora tem diretores pedindo mais livros porque estão conseguindo montar bibliotecas. Agora pode até mudar o governo, mas não vai mudar o acompanhamento que a secretaria faz, porque as pessoas descobriram que isso é bom para elas. Todos assumiram um compromisso com a educação e isso fez com que o município se transformasse”, comemora.

Os resultados impressionam, mas resta saber como Boca do Acre conseguiu tantos avanços em tão pouco tempo. Em 2001, o Instituto Ayrton Senna levou ao município a proposta de ajudá-lo a combater as dificuldades com a educação local. No caso, o maior problema era a distorção idade-série. Mas o instituto percebeu, conforme conta Inês, que isso era consequência de problemas de gestão, questão geográfica que dificultava a comunicação da rede, falta de qualificação dos professores, pouco foco na aplicação de recursos, descentralização das escolas e falta de avaliação e acompanhamento dos alunos, fatores que geravam má qualidade do ensino, abandono e reprovação. Estava tudo interligado.

“Entendemos que deveríamos otimizar recursos e dinamizar o processo educacional. E isso foi fundamental, porque vivíamos em um faz de conta: o professor fingia que ensinava e o aluno fingia que aprendia”, relembra Souza. “Antes, não tínhamos noção de como funcionava a educação. Não tínhamos dados. Para a gente, o professor receber no fim do mês e darmos material para eles era o suficiente.”

A realidade, vivida por muitos municípios brasileiros, foi enfrentada com uma grande solução; polarizar as escolas rurais, dispersas em 22.349 quilômetros quadrados de Amazônia. A nucleação foi organizada da seguinte forma: as escolas melhor estruturadas se tornaram 12 pólos de gestão, com um diretor e um supervisor responsáveis por algumas escolas-núcleo próximas ao pólo. Esses gestores têm o dever de apoiar os professores e acompanhar o cumprimento do calendário e a evolução de todos os alunos individualmente. Depois, uma vez por mês, se reportam à Secretaria, que visita as escolas, reúne dados e monitora e sistematiza o desenvolvimento do aprendizado. Essa ação não resolveu todos os problemas de Boca do Acre, mas foi o primeiro passo para colocar a educação municipal nos trilhos. “Antes era tudo meio desorganizado. Tínhamos 160 escolas e quase não tínhamos diretores, somente professores, que faziam muitas vezes até o papel de ‘serventes’. Às vezes também faziam a matrícula de alunos fantasmas. Tinha até intriga de comunidade porque queriam que o professor fosse alguém da família”, conta Antônio Bessa, coordenador do programa do Instituto Ayrton Senna na Secretaria Municipal. “Com a vinda do Instituto e o começo do projeto, veio a questão do acompanhamento dos alunos e de estabelecer metas, porque antes era tudo aleatório. Outra conquista é que a maioria dos professores hoje tem superior completo graças a uma parceria com a Universidade Estadual do Amazonas.”

A nova forma de gerir a rede de Boca do Acre segue apenas um princípio: prevenção. Segundo Inês, do Instituto Ayrton Senna, a educação no município não pode ser tratada com medidas emergenciais, tentando solucionar problemas cujas raízes eram muito profundas, atacando consequências e não causas. “A educação precisa ser preventiva e não emergencial. A Secretaria precisa colocar um ritmo de trabalho que evite que a criança caia no fracasso, porque ela, a escola e a família vão achar que ela não tem futuro. Aí o aluno fica desestimulado, perde a autoestima e abandona a escola, e então continuamos com um monte de gente analfabeta”, afirma.

Para criar esse ritmo de trabalho para a Secretaria de Educação de Boca do Acre, o Instituto ajudou o município a criar os pólos como uma rede de apoio, na qual cada aluno é observado atentamente por professores qualificados, que reportam seu desenvolvimento a supervisores e diretores, que por sua vez recebem auxílio e ferramentas da Secretaria para assistir esses estudantes. “O olhar para o aluno e o registro do dia a dia da sala de aula são fundamentais. Começamos a trabalhar com uma observação sistemática na qual o professor olha o seu aluno e tem alguém olhando o professor, e criamos uma cadeia de observadores e de apoio”, explica Inês. “Assim, se a criança não aprendeu o que tinha que aprender no mês, toda essa equipe já vai se mobilizar para ajudar esse aluno? Se damos uma resposta rápida em vez de esperar o fim do ano e o fracasso do aluno, criamos um ambiente de aprendizagem melhor. Foi isso que Boca do Acre fez.”


Dicas de Boca do Acre

  • Fazer um diagnóstico da realidade e dos problemas do município
  • Estabelecer metas, onde o município quer chegar
  • Verificar principais necessidades e estabelecer prioridades de investimento
  • Focar o orçamento em prioridades
  • Valorizar a competência técnica e formação dos professores para criar rede de apoio e de gestão, que vai do aluno à Secretaria
  • Criar pólos de gestão regionais que ajudam a Secretaria a centralizar a avaliação das escolas e a conseguir acompanhar a rotina de cada unidade.
  • Acompanhar o desenvolvimento do aprendizado do aluno de perto e dar soluções imediatas às dificuldades.
  • Criar um ciclo de planejamento, execução e avaliação que se repita indefinidamente para responder mais e mais as dificuldades da rede.

“Para dar certo, a rede precisa se conhecer, e isso é básico. Ela tem que fazer um diagnóstico da sua realidade, estabelecendo: quem somos, o tamanho que temos e onde estamos. Em segundo lugar, precisa pensar de forma estratégia, lá para frente, onde quer chegar. A partir disso, é preciso verificar as necessidades e a prioridade de investimento. Tudo isso precisa ser planejado, executado, avaliado, reexecutado e reavaliado para criar um ciclo de ação, observação e registro de ação em cima da observação. Não adianta as redes quererem sair do lugar se não pensarem de forma macro. A gestão deve ser trabalhada com a articulação de recursos humanos e financeiros. Em resumo, a rede deve ter foco de trabalho, planejamento estratégico, valorizar a competência técnica, ter metas de médio e longo prazo, e trabalhar com políticas públicas e não ações pontuais.” – Inês Niskalo, coordenadora de educação formal do Instituto Ayrton Senna