O escritor Ricardo Lísias fala sobre seu novo livro, Divórcio, e sobre sua maneira de controlar e planejar o texto para produzir um resultado que questione as estruturas de poder

A literatura de Ricardo Lísias é como um jogo de xadrez (jogo, aliás, muito apreciado pelo autor): milimetricamente calculada, controlada e com uma estratégia muito bem traçada. Lísias gosta de planejar com minúcia não apenas a trama, mas a linguagem utilizada em seus livros – que, segundo ele, é o ponto central de suas obras.

Vencedor do prêmio APCA 2012 na categoria literatura e finalista de diversas outras premiações do ramo, Lísias defende o papel observador, questionador e crítico do escritor. Para ele, a verdadeira literatura é aquela que perturba e mexe no status quo da sociedade em que está inserida.

Nessa entrevista exclusiva à Língua, ele fala de seu novo livro, Divórcio, que está sendo lançado neste mês pela Alfaguara: a ficção explora uma desilusão amorosa e satiriza o glamour de meios artísticos e da grande imprensa. O autor também explica como lida com questões sempre presentes na produção artística – e fortemente em sua obra –, como a originalidade, a sátira, a escolha da linguagem e a constante relação feita pelo público entre fato e ficção.

Confira abaixo um trecho de Divórcio cedido especialmente à Língua:

“Olhei confuso para a vizinhança dos últimos quatro meses. Sempre me senti um estranho no bairro. O vice-presidente da república tinha um apartamento do outro lado da rua. Ninguém vai me perguntar o que aconteceu? Lembro-me de que o dono da banca de jornal na esquina me disse bom dia. Não tenho amigos aqui.

Minhas pernas estão fracas. Resolvo ir até o metrô. Uma pequena subida. Parece que a cidade está inteiramente muda. Não percebo o trânsito. Por mero acaso não fui atropelado. Preferi continuar na calçada. Gosto desse pequeno restaurante. As pessoas aqui comem pão na chapa porque querem fingir certo ar de desprendimento.”


Com as manifestações que vêm acontecendo desde junho pelo país, você defendeu que escritores pouco críticos e que não se posicionam sobre os protestos são os mesmos que criam trabalhos desinteressantes e que não fazem diferença como obra literária. O que você quis dizer com isso?

Eu estava querendo dizer que existe uma literatura no Brasil muito bem comportada, que, aliás, se reflete em comportamentos autorais chapa-branca. São trabalhos que esteticamente se alinham com algo mais facilmente digerível e de consumo imediato, ainda que muitas vezes com algum ar de sofisticação literária. Normalmente, não tratam de questões incômodas e acabam assim ficando ao lado do poder. A verdadeira literatura, ou melhor, todas as formas de arte que se prezam estão contra os discursos de poder, inclusive o literário.

O que o levou até este ponto onde está hoje como escritor, e como analisa o crescendo da sua obra?

Tenho perseguido um projeto literário bem definido há anos e a cada livro. Vejo agora que publiquei o primeiro (Cobertor de estrelas) há catorze anos! Assim, acho que aos poucos, minha proposta estética começou a ser bem compreendida e mesmo eu consegui me aprofundar nela. Acho que no decorrer da nossa conversa, meu projeto ficará mais claro.

Você costuma abordar em seus livros uma condição humana perturbada. Por quê?

Esse é exatamente um dos pontos do meu projeto. Tento observar lugares deslocados e também distantes de focos e discursos de poder. Assim, as personagens de fato estão perturbadas e afastadas. Muitas também têm dificuldade de comunicação justamente por não partilhar o discurso estabelecido.

Você faz esquemas minuciosos antes de escrever. Em que medida, além da trama, a linguagem também é planejada?

Quando estou concebendo um texto, planejo sobretudo a linguagem, pois acredito que é ela o ponto central da trama. Faço inúmeros testes, procuro formas alternativas de expressão e reescrevo praticamente tudo algumas vezes. Depois de encontrar algo que me satisfaça, o trabalho flui um pouco melhor.

Por que a linguagem é o ponto central da trama? E qual é esse ponto de satisfação?

A linguagem é a matéria prima do escritor. Não temos mais nada. Por isso é preciso não apenas conhecê-la em todas as suas nuances como também tentar ser original no uso de seus recursos. Tudo o que diz respeito à linguagem me interessa: de um fonema até o uso ideológico dos discursos. Nesse sentido, ter estudado Letras na faculdade fez muito bem para a minha carreira de escritor, embora naquele momento eu não soubesse que escreveria ficção.

Saber quando colocar um ponto final em um livro é um mistério. Eu trabalho por muito tempo em alguns textos, até finalmente não ver mais de onde tirar expressividade da linguagem. Não há mais o que fazer e eu tenho consciência de que fui até o máximo que posso. Então, passo a bola para o leitor e eu e aquele texto estaremos para sempre separados…

Você teme armadilhas do vício de linguagem e de estilo? De se sentir preso e não conseguir mudar? Ou de ficar conhecido por algo e ter medo de mudar?

Até agora, tenho tentado mudar a cada livro, mas com limites. Em O Livro dos Mandarins tentei recriar uma linguagem burocrática que também abre espaço para a ironia. No livro seguinte, O Céu dos Suicidas, o tom é mais íntimo e contido. Divórcio, por sua vez, procura trazer para o plano da linguagem o desequilíbrio e a forte tensão que estão tomando conta de toda a vida da personagem. Por enquanto ao menos, não tenho esses temores. Ainda me considero em um percurso longe de qualquer ponto final.

 Você sempre satiriza algo nos seus livros. N’O Livro dos Mandarins, por exemplo, esse algo é o mundo corporativo. Neste novo, é o mundo do jornalismo. Essa sátira, que na verdade é uma crítica, é pensada com qual objetivo?

A sátira tenta desafiar vozes de poder. Creio que ela seja um elemento muito forte de desconstrução de discursos estabelecidos e muitas vezes tomados como naturais pelas pessoas. A intenção é demonstrar o que existe de bizarro e discutível nesses lugares. Acho essa uma das funções mais nobres da literatura.

Diversos pensadores colocam que nada é verdadeiramente original, totalmente novo. Mas de tempos em tempos alguém é reconhecido por seu trabalho fora da curva e que se destaca do que está sendo feito. Você recebeu o premio da APCA na categoria literatura, e vem sendo considerado por diversos especialistas como o melhor escritor da atualidade no Brasil. Como você trabalha com essa questão do original?

A originalidade faz parte do meu projeto, sem dúvida, mas com certos limites. Talvez eu busque inclusive algum diálogo com autores que admiro. Assim, não pretendo ser cem por cento novo em tudo, mas estou atrás de formas originais de diálogo, para tentar criar um discurso estético eficaz e forte. Também acho que diante de todo o panorama literário, é preciso alguma concessão para o que já foi feito, procurando pontos de contato e também de tensão. Não quero afastar a tensão da minha obra e nem seu aspecto de contrariedade, então tento contrariar o que já foi feito (inclusive por mim), o que me parece também um ponto de originalidade.

 Você tem lançado um livro por ano, inclusive está saindo com um novo livro agora. Como é sua postura em relação à reação a seus livros? Você acha que a reação do público tende a afetar o resultado do trabalho do escritor em geral?

Acho que foi algo circunstancial ter publicado um livro no início do ano passado e agora outro no meio desse ano. Não pretendo publicar um romance no ano que vem e talvez sequer em 2015, embora não queira afirmar com tanta certeza. Quanto a mim, procuro não me influenciar por aspectos externos ao meu projeto. Ou seja: não deixo o público me mudar, eu é que tento mudar o público leitor!

Nos seus dois últimos livros – O Céu dos Suicidas e o mais novo, Divórcio –, o protagonista chama Ricardo Lísias. Isso desperta curiosidade no público. Como foi para você o processo de decidir que nesses dois livros o protagonista teria o seu nome?

Trata-se na verdade de uma tentativa de intervenção na maneira com que o público leitor em geral – e ainda com mais força no Brasil – lê a ficção. Eu notei que as pessoas tendem a achar que o autor teria de fato vivido o que um romance cria, o que evidentemente não é só um absurdo, mas também algo muito redutor no que diz respeito à arte. Faço questão de lembrar sempre: a literatura é um dos gêneros da arte! Então, resolvi criar uma espécie de curto circuito nesse protocolo de leitura, tentando enfatizar que um romance não trata da vida real. Entre meus procedimentos está o de dar ao narrador o meu nome, para ver se as pessoas ficam mais atentas e contornem essa leitura redutora.

Um artigo da escritora Leni Zumas, publicado recentemente na revista americana Good, diz que um dos trunfos do bom escritor é conseguir sempre olhar e descrever as coisas com um olhar renovado, como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez – ela inclusive cita o começo de Ulisses para ilustrar isso. O que você acha disso?

Acho que o escritor cria novas situações, novos objetos e novas pessoas para com isso intervir no que já existe. Nesse caso, a própria realidade conseguiria ser observada com mais riqueza de detalhes e inclusive maior originalidade. Então, acho que concordo, pois dessa maneira o olhar para a realidade acaba enriquecido.

Você está lançando seu sétimo livro, Divórcio, agora em agosto. O que pode nos adiantar sobre ele?

Divórcio cria ficcionalmente uma desilusão amorosa para discutir o glamour que tomou conta de muitos ambientes artísticos, o trabalho da chamada grande imprensa e também questões éticas envolvidas nos relacionamentos afetivos contemporâneos.